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quarta-feira, 21 de março de 2012

momentos que nos chamam



(...)
Lembro-me como se fosse ontem: quando reparaste que era eu quem ali estava, num instante coraste, levaste a mão à boca e gritaste de terror com os olhos sem que ninguém à tua volta o reparasse. Confesso que o que me espantou naquele momento foi mais o teu olhar demasiadamente envergonhado e comprometido do que outra coisa qualquer. Desculpaste-te e foste à casa de banho lavada em lágrimas, deixando surpresos os que te acompanhavam. 


O que é que se passou entre nós? Tinhas-me mentido a mim ou a ti própria, não sei. Sei apenas que a verdade é uma das componentes essenciais da reação fotossintética que produz amor. Quem falta à verdade, falta no amor, como se ambos fossem faces da mesma medalha, em que a existência da mais pequena reserva interior reflete-se nos atos de entrega, porque lhes retira a saúde própria de lhes fazer corresponder, pelo menos, uma equivalente porção de amor.


Aquele momento foi como poucos na minha vida. São momentos que nos chamam. Que passam por nós, muitas vezes num instante, e que se estivermos atentos, mostram-nos as faltas de amor que existem na engrenagem das nossas vidas. As faltas de amor que acabam por obstruir os vasos que fazem a distribuição do melhor que há em nós, por todos os que se cruzam no nosso caminho. E eu gostava demais de mim para ficar ali por mais um minuto que fosse. Por isso, quando voltaste, já eu estava bem longe dali. 


Não sei o que terás pensado da minha partida mas concerteza que não terás estranhado a maneira como me vim embora. Certamente que me esqueceste e foi assim que ficámos. E para minha pena, culpa e despeito, nunca mais te vi.

(...) 
JAO

terça-feira, 6 de março de 2012

A má memória dos bons exemplos


(...)
O meu pai José tinha sido coronel na Força Aérea e havia morrido poucos anos antes, tinha eu catorze. Teve um acidente num festival aéreo muito falado na altura, porque apesar da falha mecânica o piloto poderia ter-se salvo, não fosse a manobra feita no último instante para desviar a aeronave de alguns espectadores que ainda se encontravam na pista. Por esta altura já ninguém falava disso, porque a memória das pessoas é muito curta, sobretudo quanto a bons exemplos. Não sei bem porquê, mas acho que todos temos muito mais tendência para nos lembrarmos das falhas dos outros do que das suas virtudes ou atos de heroísmo. Penso que nos é muito mais cómodo fazer notar uma falha alheia qualquer, cuja comparação nos será em princípio favorável, do que reconhecer os bons exemplos que podem inspirar-nos verdadeiramente, e que às vezes até vêm daqueles que nos são mais próximos. Mesmo que não estejamos disso conscientes, a opção pelo esquecimento, sempre que nos deparamos com o rasto de quem nos merece todo o respeito e reconhecimento, acaba por ser um escape à inevitável confrontação connosco próprios e com as nossas insuficiências. Talvez seja daí que vem a tendência natural do subconsciente humano em guiar-nos para longe dos exemplos que nos possam magoar na comparação. Mas esta viagem que nos traz conforto, não passa de um escape àquilo que às vezes somos e não conseguimos suportar. O esquecimento, quando é possível, leva sempre para muito longe um bom pedaço de nós. Muitas vezes, aquele que ainda podemos mudar. Aquele que ainda podemos alcançar. É o desânimo que acaba por levar a que a memória retenha melhor os maus momentos do que os bons. E se não tivermos cuidado, essa falta de esperança é capaz de nos corroer por dentro, de nos matar aos bocados. Ainda que nos custe, devemos procurar não perder a memória dos bons momentos. Porque são eles a única hipótese que ainda podemos ter, de recuperar aquilo que faz de nós o que somos, ou o que ainda poderemos vir a ser. E por mais que se queira, para o bem ou para o mal, poucas coisas são mais difíceis para um filho, do que fugir ao exemplo do seu pai.

Apesar de aquela morte ter-me aproximado muito da minha mãe, a verdade é que nenhum de nós voltou a ser o mesmo. O seu cabelo tornou-se grisalho, vincaram-se-lhe as rugas e os seus olhos assumiram um tom triste. Passou a usar sempre qualquer coisa negra com o que quer que vestisse, provavelmente para condizer com a sombra carregada que a perseguia e as suas amorosas feições não conseguiam disfarçar. Vivia numa espécie de luto permanente que se lhe entranhou no sorriso e que com ela se fundiu. Na verdade julgo que a morte do meu pai aproximou-nos tanto quanto nos separou. Aproximou-nos porque passámos a ser só nós lá em casa. Passei a substituir o meu pai na vida da minha mãe e no quotidiano daquela casa. Bem mais do que queria até. Mas de certa maneira, o seu desaparecimento também acabou por nos separar. Enquanto eu vivia como um jovem rebelde, ávido de futuro e vontade de fugir ao ambiente soturno em que se tornou a vida naquela casa, a minha mãe vivia com os olhos postos no passado, constantemente revivendo episódios ocorridos lá atrás. Ambos sentíamos imensa falta dele. Mas ela não perdia uma oportunidade para reanimar o meu pai para as nossas conversas e de reabilitar para o nosso dia-a-dia a memória de alguém que já não estava ali nem ia estar. Tanto que por vezes parecia não reparar que o filho, que estava sempre ali, e tantas vezes fazia mais do que podia para lhe aliviar a dor, ao tentar parecer-se sempre um bocadinho mais com o seu falecido pai.
(...)

segunda-feira, 27 de fevereiro de 2012

O amor é um jogo tramado


O amor é um jogo. É como investir na bolsa. É um jogo só para quem pode e sabe jogar. No fim, apenas acabam por manter-se em jogo aqueles que se podem dar ao luxo de perder. Os restantes vêm e vão, porque ou jogam a medo ou fazem all-in ao mais pequeno pressentimento. Toda a gente sabe que quem joga a medo está destinado a perder, como também o estão aqueles que colocam todas as fichas no mesmo número. E neste jogo, a quem perde tudo não resta solução do que o exílio para uma vida de rancor e solidão. Acocorando-se dentro do seu pequeno casulo, conscientes de terem sido roubados do mais íntimo resto de si, com medo que o céu lhes caia em cima sem qualquer aviso.

A maior parte de nós sabe que por não saber jogar ao mais alto nível, pode ser atingido por alguém mais treinado na arte da duplicação das suas caras ou dos seus corações. E que podem, sem disso dar conta, acabar por entregar uma parte de si que pode vir a revelar-se muito difícil de voltar a recuperar. Uma parte que pode ser levada daqui para bem longe, sem dó nem piedade, enquanto o outro passa de irmão a vencedor, e se retira em busca de um novo planeta para secar.

O amor é um jogo tramado, porque só pode ser jogado por doidos ou apaixonados. Não é para quem não tem nada a perder, porque quem não tem nada, não tem nada para apostar. É só para quem não tem medo de arriscar mesmo. Para quem é meio atirado e não se importa de pôr o pé na tábua na autoestrada. Para quem sabe ter a calma necessária para pensar com a cabeça fria e contar consigo mesmo para enfrentar o risco de perder. E para quem sabe dar de si apenas o necessário para corresponder mas não o suficiente para ficar-se vazio de todo. O amor é um jogo de doidos varridos porque não é fácil aguentar-se a pressão de quem dá e poupa ao mesmo tempo. É só para os que conseguem jogar sem vertigens, como se não soubessem o perto que estão daquela guilhotina voadora e caprichosa capaz de a qualquer momento levar para bem longe todo e qualquer vestígio de nós mesmos, deixando apenas para trás o fantasma do que antes fomos.

Por isso, se alguma vez perderem neste jogo, não entreguem os pontos todos: fujam, desapareçam. Deixem crescer uma barba e comecem do zero noutro lugar qualquer, de preferência bem longe daquele que outrora foi a vossa casa. Deixem que os outros fantasmas se esqueçam da vossa existência, e apenas voltem, depois de isso acontecer. Para que um dia possam finalmente voltar a ir a jogo, depois de a cabeça e o coração voltarem a cair no seu devido lugar.
JAO

terça-feira, 13 de dezembro de 2011

Adiante

"Não precisámos sequer de nos dar a conhecer, pela simples razão de que, desde a primeira hora, tudo nos pareceu estar dito. Mas também porque, misteriosamente, depois daquele dia, nunca mais necessitámos fosse do que fosse, que não estivesse mesmo ali, bem diante de nós" jao

 

quarta-feira, 23 de novembro de 2011

A Grande Festa

Durante todo este tempo por aqui, acabei por me dar conta de que, ao mesmo tempo que temos a tendência colectiva de atribuir nomes às coisas, distribuir juízos, colocar os outros em caixinhas com etiquetas organizadas por cores e por ordem alfabética, a verdade é que o que se passa cá dentro tem a biodiversidade da natureza de um autêntico universo paralelo. A infinidade de tons, de cheiros, percentagens de humidade, ritos de acasalamento é de tal ordem que as palavras não chegam para traduzir todos os estados, sentimentos e verdades de cada um. O mundo é toda uma grande festa onde todos parecem alegres porque ninguém se quer dar ao trabalho de tentar sequer começar a explicar a quem dança ao seu lado, o que carrega dentro do coração. Porque o esforço seria grande, o tempo limitado e porque provavelmente o outro nem entenderia. Ou se entendesse, talvez não quisesse saber. Eu talvez não quisesse. Por isso é que todos usamos máscaras que funcionam como ecrãs de normalidade que aprendemos a ostentar perante os outros, e que usamos para os seduzir, para nos escondermos, ou para nos dar o refúgio ou o conforto de que necessitamos. Mas é bom não perdermos de vista que de facto, as mascaras são só o que são. É bom não nos esquecermos que por mais que todos as usemos nesta grande festa onde estamos metidos, atrás de cada linda máscara veneziana, esconde-se uma pessoa igual a mim.
A verdadeira razão porque nos escondemos é que queremos ser aceites ou amados e temos medo de não o ser. Todos queremos alcançar as ideias de ordem e perfeição que criámos para nós e não somos capazes de atingir. E por isso, castigamo-nos e rejeitamo-nos repetidamente. A ponto de nos convencermos que a nossa felicidade depende de qualquer coisa que nos é exterior, muitas vezes esperando até que alguém apareça e nos faça felizes. Mas como é óbvio, procurar que os outros nos façam felizes é tudo menos amar. Amar não é pretender absorver a chama dos outros quando tudo o que existe dentro de nós é apenas um frio e vasto espaço vazio. Não tem nada a ver com alimentarmo-nos de quem está à nossa volta. A quem amamos devemos bem mais do que isso. Devemos-lhes o melhor de nós. Devemos passar-lhes a chama que temos, por mais pequena que ela seja. Como ninguém pode dar o que não tem, amar é partilhar o amor que já trazíamos dentro, mesmo antes de entrar na sala. E quem não tira a sua máscara e se revela a si e o que traz por dentro, nunca conseguirá amar. 
Porque a verdadeira felicidade está afinal aprisionada debaixo de todas as camadas que nos foram sendo acrescentadas, desde o dia em que nascemos. Está na nossa capacidade de regressar ao tempo em que tudo em nós era claro, natural e espontâneo. Na capacidade de voltar às origens e de encontrarmos a criança que em tempos fomos e que temos de conhecer novamente. Na criança que está aqui dentro, à espera de ser libertada, sob a forma de amor.
JAO

terça-feira, 22 de novembro de 2011

Textinhos de Verao

Afife, 23.8.2011

É importante não perdermos a capacidade para nos apaixonarmos. Termos a capacidade para nos apaixonarmos é a prova acabada de que ainda não sucumbimos ao mundo. De que ainda não suicidámos a nossa criança interior. Quem se apaixona fecha uma porta e abre outra. Fecha a porta de entrada dos problemas, das angústias, e dos desesperos da vida pois vê no seu recém encontrado amor a força, a solução e a saída para todos eles. Mas também abre uma porta que por vezes fica copiosamente escancarada para nos marcar para toda a vida. É o obturador do coração, feito para se abrir e fechar por breves instantes. O tempo necessário para na alma tirar a fotografia de cada momento inesquecível, mas que se não tivermos cuidado pode demorar-se a ponto de a deixar queimar-se por completo. Quando isso acontece, tudo, incluindo funções vitais, os instintos ou a moral passam para segundo plano, e expomos o nosso eu essencial aos caprichos dos outros ou dos elementos. E ai, ou sofremos sozinhos essas queimaduras inúteis e cataclismicas, curando as feridas e encaixando com dignidade as derrotas, ou então negociamos com o outro uma forma de escrevermos nas paginas ainda em branco desse caderno qualquer coisa que ainda possa ser aproveitada. E assim, com a ajuda dos cacos que ainda restam após a abertura descontrolada do nosso obturador interior, construir-se um futuro feito de perdão, oferecimento e partilha.
JAO
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quinta-feira, 3 de novembro de 2011

21. Encontros




Foi preciso chegar aos quarenta anos de idade para te escrever esta carta e reconciliar-me com o facto de te ter virado as costas sem te dar uma palavra sequer, por mais inútil que ela me parecesse. Acho que devia ao menos ter-me despedido de ti, antes de ter ficado fiel depositário deste amor, que permanecerá vivo e desemparelhado, suportando o peso das horas e dos dias, à espera que um dia lhe seja dado uso. Mas há coisas bem piores do que esperar, já que se pensarmos bem, o segredo da infelicidade é querer-se tudo para já.

Só agora vejo, minha querida Inês, que o amor não acaba nunca. Ainda que muitas vezes não o queiramos admitir porque estamos todos marcados uns pelos outros, a verdade é que, quer queiramos quer não, passam os tempos, passam os problemas, passam as pessoas, mas no fim, apenas o amor permanece. Como acontece sempre que, por um acaso qualquer encontramos alguém que outrora foi importante na nossa vida mas que não vemos há muito tempo. São encontros que acabam sempre por ser surpreendentes. Porque ocorrem a maior parte das vezes sem o peso do sem número de escolhos emocionais com que em tempos nos deixámos mutuamente desamparados. Mas também porque durante esses encontros acabamos por dar connosco com o inesperado sabor de nos termos reencontrado com alguém que foi outrora digno do nosso amor incondicional. Umas vezes pelas razões que tornam o outro tão amável aos nossos olhos, outras pela história que juntos tivemos, mas quase sempre por ambas.
E o que acaba por definir as nossas vidas é a maneira como lidamos com a circunstância de que, de facto, o amor nunca acaba. Ou deixamos que o medo acabe por nos encolher, tentando forçar o esquecimento ou porque o amor nos faz sentir uns miseráveis, ou porque nos faz culpar os outros ou porque nos torna mais amargos ou vingativos, ou então, aceitamos que de facto, o amor é um dom que permanece. Porque não é o amor que nos trai, aprisiona ou desilude. São os outros. E é quando percebemos a diferença entre aquilo que nos acontece e o amor que verdadeiramente sentimos, que nos damos conta que o maior desafio que temos e que tantas vezes tantas vezes nos passa despercebido, é o de sabermos a cada momento aproveitar esse amor que no fim de tudo nos resta e nos fica nas mãos, à espera do momento em que lhe voltemos a dar uso.
Para isso, é preciso termos a coragem de não permitir que as dores do mundo nos tornem mais pequenos e nos retirem a coragem para decidirmos o que fazer com o que sentimos. Porque o amor não tem um nome, não tem uma cara, e certamente não tem um culpado. É algo que trazemos dentro e que ou deixamos que nos consuma, ou permitimos que nos anime a partilhar e a construir com os que entretanto continuam à nossa volta. A vida é isso mesmo: a arte de aprender a conviver com o amor através do tempo. O amor que no final de contas é o que nos desafia e ajuda a descobrir a pessoa que fomos feitos para ser. E que nessa medida, se revela como a única coisa verdadeiramente capaz de nos libertar.

Tudo o que aqui te escrevo é o beijo de despedida que sempre senti que te devia, acrescido dos juros das palavras que ficaram por dizer e das que entretanto a vida me deu para te entregar. Tenho muita pena que tudo tenha ficado como ficou. Mesmo noiva de outro, o meu amor por ti merecia bem mais do que aquele cobarde virar de costas de que até hoje não me consegui perdoar. Hoje sei que mesmo quando somos assaltados pela dúvida, nunca devemos deixar de lutar por aqueles que amamos.Mas o que agora importa é este meu beijo que aqui fica, com toda a ternura com que nos recordo.

Se reparares querida Inês, a vida e o céu são extremos opostos que têm algo de fundamental em comum. Uma coisa que todos reconhecemos em ambos e que se quisermos pode tornar irrelevante a distinção entre ambos: o encontro. O céu é o lugar de encontro por excelência, o lugar onde nos prometeram todos os encontros. Onde um dia nos encontraremos com o Criador, uns com os outros, com os que nos antecederam e eventualmente, com todos os que vierem depois de nós. Mas ao contrário do céu, a vida não é um lugar. A vida é um tempo. Um tempo muito limitado, que se quisermos, podemos também transformar em ocasião para muitos e bons encontros. Encontros entre pessoas, entre ombros amigos, entre mãos e braços que se procuram no meio do escuro das lutas do dia-a-dia. A frequência destes encontros e reencontros é a única coisa capaz de fazer com que a transição entre a vida e o céu se torne numa passagem suficientemente suave, natural e indolor para que, com um bocadinho de sorte, nem sequer demos por ela. Como me teria acontecido se imediatamente depois daqueles nossos quatro meses juntos, ao invés do atlântico, tivesse atravessado aquela pequena passagem que me separava de todos os mortos que caminhavam comigo.

Espero de todo o coração que esta carta te encontre feliz e em paz e espero que Deus nos dê o tempo e a coragem para que possamos transformar os dias de vida que ainda nos restam, em tempo de muitos e bons encontros, tanto com quem nos espera, como com aqueles que amamos.
Obrigado pelas memórias que nos tenho, Inês. E perdoa-me por ter demorado tanto tempo a descobrir em mim o homem que sempre mereceste.
Um beijo do respeitosamente teu,

quarta-feira, 12 de outubro de 2011

minuta de CARTA DE RESPOSTA A VIZINHO DESCONTENTE

Nota prévia

Como já devem ter reparado, há já algum tempo que não escrevia nenhum texto na minha rubrica “apoio jurídico sentimental”, que ao contrário das “viagem na maionese”, “curtas carinhosamente ficcionadas” e “artigos de opinião sobre os mais variados tópicos habitualmente objecto de generalizações abusivas”, tem de facto andado um bocado parada. Penso que existe no entanto espaço para vos fornecer mais uma peça de labor jurídico-hermenêutico que concerteza será da maior utilidade, a adicionar aos conhecidos “minuta de CONTRATO DE NAMORO” e da “minuta de DECLARAÇÃO / ATESTADO DE PAIXÃO”. Trata-se de um conjunto de textos que têm contribuído para a felicidade de milhares de casais por esse mundo fora, pois através de linguagem técnica, simples e precisa contribuem para a clarificação de situações e perturbações típicas de que se verificam em certas alturas da vida em que se vivem autênticas tempestades emocionais, constipações mentais ou a típica ensandecência passageira de quem perdeu a cabeça por alguém.

Fui abordado muito recentemente por um amigo pedindo que lhe escrevesse uma carta de resposta à interpelação de um vizinho descontente com determinados "ruídos nocturnos". Trata-se de um caso de alguma complexidade jurídico-sentimental e uma situação que em alguns casos poderá assumir contornos especialmente dramáticos.

Tenho a certeza que em termos estatísticos, este texto que agora se publica se revelará de uma enorme utilidade para a grande maioria dos meus demais amigos e amigas, cuja maioria foi com toda a certeza abordada no elevador, na escada ou por escrito por um ou outro vizinho ou vizinha mais afoitos com o habitual comentário: “você ontem parecia que estava a bater em alguém, hein?”, “bem, amigo, isto ontem foi animado… que é que andou a fazer, a dança da chuva?” ou o mais explícito e brejeiro “você ontem, hein? parecia que tava a matar o gajo!”.

Daí que tenha elaborado desta feita uma “minuta de carta de resposta a vizinho descontente” cujo teor passo a reproduzir, para uso de todos.


«Exmo(a). Vizinho(a)
Sr. [...]
[inserir morada]

[local], [data]

Assunto: [breve troca de impressões no elevador do dia …/…/…], ou [sua carta do passado dia …/…/...].

Exmo(a). Senhor(a),

Acuso a chamada de atenção que me fez no elevador no passado dia […], que mereceu a minha melhor atenção e a que passo a responder.

Antes de mais, deixe-me dizer-lhe que, muitíssimo para além da legislação sobre distúrbios nocturnos que o(a) Exmo(a). Vizinho(a) com toda a gentileza citou, o que me preocupa é, isso sim, a sua tranquilidade, o seu sossego e o seu descanso, como aliás a de todos os meus vizinhos, e espero, como é óbvio, que todos saibam também respeitar o meu descanso, espaço e tranquilidade pessoais.

No entanto, muito estranhei os seus comentários, principalmente por duas ordens de razão que passo a enunciar. Em primeiro lugar, pelo tom com que se dirigiu a mim, pois como compreenderá não o conheço de lado nenhum, nem tenho infelizmente qualquer recordação de V. Exa. alguma vez me ter sido apresentado. Depois, porque apesar de referir “lamento ter de chegar a este ponto”, ameaçando “tomar outras medidas”, “ruídos nocturnos que tem ouvido nestes últimos tempos”, a verdade é que até à data nunca tinha sido por si abordado relativamente a qualquer ruído incomodativo, o que não pode deixar de ser bom sinal. Assim, congratulo-me portanto por iniciarmos por esta via uma primeira e saudável comunicação entre vizinhos, que urge mantermos com os mais elevados padrões de moderação, educação e da indispensável cooperação, que caracteriza as boas relações de vizinhança.

Por outro lado, estranhei a referência por si feita a “constantes gemidos, uivos e horríveis batuques a horas desapropriadas, que impedem o normal funcionamento da minha vida, uma vez que provocam graves distúrbios no meu sono e sossego.”. É que, sem querer entrar aqui em debate sobre a intensidade ou sobre a origem do ruído que efectivamente entra na sua fracção, a verdade é que desconheço por completo que constantes barulhos noturnos sejam esses, que saiam da minha e que sejam de tal modo intensos que possam causar impacto suficiente para impedir o normal funcionamento da sua vida, e de serem os causadores dos graves distúrbios a que se refere.

No entanto, e sem por em causa que de facto existe qualquer coisa que o(a) perturba e que deverá ser seriamente abordado através de psicoterapia intensiva e da mais variada farmacopeia disponível na internet sugiro que tente arranjar companhia. Verá que a sua solidão possui propriedades alucinogéneas que serão rapidamente compensadas pelo efeito profiláctico de uma boa companhia, de preferência do sexo oposto.

Adicionalmente, e uma vez que além da por si mencionada “legislação sobre ruídos nocturnos” existem outros bens jurídicos também eles dignos de protecção legal, que conferem aos particulares verdadeiros direitos subjectivos, tais como o abuso de direito, os direitos de reserva da intimidade da vida privada e familiar dos cidadãos, muito lhe agradecia que da próxima vez que verificar a existência de qualquer ruído, cheiro, trepidação ou premonição que ainda que remotamente suspeite possam vir da minha fracção, entre imediatamente em contacto comigo através do telefone nº. [… … …].

Isto porque, como saberá, o comentário com terceiras pessoas sobre especulações da minha vida privada, além de desagradável, é também uma violação daqueles direitos, também eles legislados. Além disso, será duvidoso que esses terceiros possam, sem violação daqueles direitos, ter algum conhecimento ou influência sobre o que se passa numa fracção que não lhes pertence, e de cujo agregado familiar não fazem parte.

Assim e no espírito da boa vizinhança, informo que de futuro terei atenção a ruídos oriundos da minha fracção e peço-lhe que logo que sentir alguma perturbação que suspeite possa ter origem na minha fracção e que tenha o impacto suficiente para impedir o normal funcionamento da sua vida, ou de lhe causar graves distúrbios no seu sono e sossego, que entre em contacto comigo para o meu número de telefone acima indicado.

Aproveito a ocasião para apresentar os meus melhores cumprimentos,

[assinatura]»

Tendo sido elaborada para uso geral, esta minuta deverá sofrer os ajustamentos que forem impostos pelas circunstâncias do caso concreto e com o prévio parecer de alguém legalmente habilitado a prestar consultadoria jurídica, não se responsabilizando o signatário pela sua utilização inapropriada.

JAO

quarta-feira, 28 de setembro de 2011

18. A origem dos milagres

Tenho me lembrado muitas vezes da nossa última conversa naquele dia em que dissertámos no profético Buenos Aires sobre a natureza do amor e sobre onde é que todos nós ficamos em relação a ele. Tenho sobretudo feito um balanço sobre o caminho trilhado ao longo destes últimos vinte anos. Foram anos passados noutro hemisfério e a meio mundo de distância, em que procurei esquecer a tua memória enchendo-me de certezas e forçando-me em frente, de proa apontada a um porto de chegada onde tudo faça sentido, incluindo entregar a vida por alguém. Demorou muito tempo até perceber que por mais que a brisa do tempo me leve, sarando as feridas e amansando a dor da tua ausência, tanto o esquecimento como o amor não se procuram. São eles que no fim nos hão-de encontrar a nós.
E pelo que tenho visto, minha querida Inês, nesta vida que é cada vez mais feita de enganos e de aparências, o amor já não é qualquer coisa a que as pessoas atentem, já não é um valor que se respeite ou que condicione as nossas escolhas. Vivemos novos tempos em que parece que a sobrevivência nos impõe novos valores. Em que um amor verdadeiro já não é aquela força motriz de sonhos a ser defendida como um ponto de honra, contra tudo e contra todos, como sinal de força e lealdade para consigo mesmo, e para com a réstia de divindade que ainda transportamos no sacrário do nosso templo interior. O que eu hoje vejo é o amor ser distratado por quase todas as gerações como a droga dura dos tempos modernos. Sujeita a outras forças, outras necessidades, outros factores. Uns novos, outros nem por isso, mas todos eles igualmente inconfessáveis.

Também eu, umas vezes por comodismo, outras por uma questão de sobrevivência, tenho caído no erro de desbaratar este tesouro, enquanto, como o resto de nós, aguardo por alguma coisa que me venha libertar desta tua presença indesejada que só historicamente pertence ao passado, porque na verdade sempre esteve aqui presente. De tal maneira que há muito que deixei de me queixar aos outros por pura vergonha de admitir que é em ti que eu penso, todos os dias. E quando me abro, ninguém percebe que é de ti que eu falo. Nos dias que correm guardo só para mim o vexame da impotência que sinto quanto às muitas saudades que te tenho.
Com o tempo acabei por me conformar com a tua presença imposta no meu coração com uma força que eu não compreendia. Mas como se te sufocasse durante o sono, exorcizava-te todos os dias e noites, com a ajuda da bebida, das mulheres e das longas horas de trabalho em que me deixei inundar, na firme esperança de um dia te expulsar da minha vida. Durante vários anos vivi contigo uma amarga e privada história de amor, imerso numa autêntica vida dupla. Porque nenhuma das mulheres que se cruzaram comigo chegaram a perceber que de facto, era contigo que eu me deitava todas as noites, para nas manhãs seguintes descobrir que afinal, estava a acordar sozinho.

Acho que à medida que os anos passam, vamos criando películas exteriores que endurecem a nossa pele. E que nos fazem perder aquela película transparente de inocência de que necessitamos para amar com grandeza, altruísmo e abandono e para sermos capazes de defender as nossas memórias mais exemplares, com todas as forças, até ao último suspiro. Cada um destes cabelos brancos que ao longo dos anos me foram aparecendo, representam um momento diferente em que, por perda da inocência, neguei a mim mesmo a possibilidade de deixar que essa luz entrasse na minha vida. E talvez por causa disso, dia após dia, também eu fui perdendo a capacidade para amar novamente.
Dei por mim a reparar que, depois destes anos todos, o verdadeiro amor, esse, estava escondido e enterrado no passado. E que as ilusões que aqui e ali fui criando em torno dessa ideia, não passavam afinal de fugas à angústia provocada por esse meu beco sem saída. De fugas que acabaram por se revelar autênticas concessões a essa subtil tendência de retirarmos da equação das nossas vidas a luz de inspiração que vem de cima e que se manifesta cada vez que alguma coisa ou alguém nos faz desviar o olhar do escuro da nossa grutinha privada. Essa tendência a que hoje em dia teimamos em não resistir, para minimizar o que poderia ser um amor bem vivido, preterindo-o por uma outra coisa a que damos o mesmo nome. Mas que na realidade não passa afinal de um simples meio que todos usamos para fugir ao terror particular de cada um, através do afecto de quem não amamos, do dinheiro que não temos, ou da atenção de que julgamos necessitar.
Mesmo assim, é importante lutarmos para não perder a capacidade para nos apaixonarmos. Termos a capacidade de nos apaixonarmos é a prova acabada de que ainda não sucumbimos ao mundo. De que ainda não suicidámos a nossa criança interior. Quem se apaixona fecha uma porta e abre outra. Fecha a porta de entrada dos problemas, das angústias e dos desesperos da vida, pois vê no seu recém encontrado amor a força, a solução e a saída para todos eles. Mas também abre uma porta que por vezes fica escancarada para nos marcar para toda a vida. É o obturador do coração, feito para abrir e fechar por breves instantes, apenas o tempo necessário para na alma tirar a fotografia de cada momento inesquecível. Mas que se não tivermos cuidado, pode demorar-se a ponto de deixá-la queimar-se por completo. Quando isso acontece, tudo, incluindo funções vitais, os instintos ou a moral passam para segundo plano, e expomos o nosso eu essencial aos caprichos dos outros e dos elementos. E aí, ou sofremos sozinhos essas queimaduras inúteis e cataclísmicas, curando as feridas e encaixando as derrotas com dignidade, ou negociamos com o outro uma forma de escrevermos nas páginas ainda em branco desse caderno qualquer coisa que ainda possa ser aproveitada. E de assim, com a ajuda dos cacos que ainda restam da abertura descontrolada do nosso obturador interior, construirmos um futuro feito de perdão, oferecimento e partilha.

O que te quero dizer minha querida, é que mesmo depois destes anos todos a tentar esquecer-te com remendos e pensos rápidos, ainda acredito no amor. Mas não no amor de que se fala por aí, em voz alta, nos cafés. No amor incondicional que nos leva a fazer disparates, que nos leva a rasgar a camisa como nas telenovelas venezuelanas, dar um murro na mesa e depois virá-la ao contrário no meio da festa enquanto a madrinha prova a sobremesa. No amor desinteressado, irmanado e infantil entre um homem e uma mulher, com as mãos em posição de dar e os olhos postos no futuro. Naquele que faz o mundo desaparecer e passar para segundo plano. No amor vivido em tolerância, amor, entrega e respeito, essas coisas que hoje em dia não se vê muito, porque dão trabalho e requerem coragem. Custam a negociar, moldar, aprender, porque implicam ceder. Implicam convidarmos o outro ao fundo das nossas inseguranças, incertezas e hesitações. E implicam mergulharmos nas profundezas mais sombrias de quem gostamos e ainda assim regressarmos, de amor intacto.
Mas se já é raro sentirmos um amor verdadeiramente puro por alguém, pleno de conquista, satisfação, camaradagem e entrega desinteressada, que nos toque nas teclas todas e faça sentido nos cantos da nossa cabeça e em cada pedaço do nosso corpo, mais raro ainda é aprender, negociar e construir com quem nos corresponde, uma relação que justifique nada mais, do que abdicar de tudo o resto.
O principal problema do amor, nos dias que correm, é que a certa altura o que ele nos pede é sacrifício. Às vezes até heroísmo. Porque quando nos entregamos assim, depois não nos podemos queixar se partirmos a mão na mesa, se formos expulsos da festa, ou se a madrinha ficar com a blusa cheia de nódoas. E apesar de não existir mais ninguém tão preparado para se sacrificar como aquele que ama, hoje em dia ninguém está para se chatear. Andamos todos de crista tolhida pelo medo. Já ninguém dispensa a sua bolha particular de segurança, as suas portas blindadas, fechaduras, trancas e trincos, os seus telemóveis e seguros de vida. Já ninguém viaja sem cinto de segurança, arrisca o pescoço pelos outros ou se atira de cabeça da prancha mais alta da piscina para conquistar a miúda mais gira do sítio. Poucos têm o estofo ou a inclinação para carregar o outro às costas. E sobretudo, com a perda de inocência, poucos acreditam que o outro os carregaria, se fosse preciso. Até percebo que nos protejamos destas desilusões. O que eu não percebo é que, sem nos darmos conta, com isso nos estejamos a proteger desnecessariamente da própria vida.
Por causa do medo, o amor tem-se tornado cada vez mais numa palavra vazia que ao longe acenamos frequentemente uns aos outros, como uma bandeira, de ânimo leve e consequências desastrosas. Uma palavra que nos apazigua e que nos enche de ilusão e conforto, mas sem um significado real por não ser realmente vivida. Talvez seja por isso que hoje em dia, tanto o amor como o próprio Deus estejam a perder curso legal na economia paralela dos afectos, empacotados em caixotes empoeirados e relegados para as caves da memória, porque causam alergia. É por isso que esse estado de entrega permanente que se satisfaz em si mesmo, seja cada vez mais visto ora como uma doença a evitar, prevenir ou debelar, ora como uma droga com que nos auto-medicamos sob a forma das mais variadas promessas de que não temos verdadeira intenção de cumprir. E enquanto isso acontece, preparamo-nos para um novo dia sem acreditar em nada exterior a nós próprios e transformamos o amor numa mentira funcional que exige disciplina e autocontrolo. Que naturalmente pede que declaremos guerra a nós próprios, ao encantamento descontrolado típico de quem está apaixonado e às várias reacções fisiológicas que tendem para essa indesejada revolução amorosa.
E assim, no meio do reboliço do dia-a-dia, facilmente nos descartamos uns aos outros com a facilidade de um simples estalar de dedos sempre que, por qualquer razão, a pessoa a quem declarámos amor deixa de nos servir ou de fazer aquele sentido com que em tempos idealizámos. E assim permanecemos, cada vez mais fechados e votados ao nosso canto, de braços cruzados e à espera de um milagre. E todos nós sem excepção, mesmo aqueles que não acreditam em milagres, desejam que eles aconteçam. Mas os milagres, Inezinha, esses, não existem, a menos que aconteçam primeiro dentro de nós. Há que perder o medo e confiar. E ver como o tempo é nosso amigo que além de ajudar a suavizar o passado dorido, amansando as feridas que a água salgada não deixa sarar, muitas vezes é ele mesmo — e mais ninguém — que nos acaba por mostrar aquilo que sentimos e quem verdadeiramente somos. Que nos dá as lições, que nos perdoa e nos dá a redenção de que necessitamos.

Daí esta carta que te escrevo, que é acima de tudo sinal de fidelidade a tudo isto que o tempo me mostrou e que durante tantos anos a negação e o medo não me deixavam ver. Deu-me todas as lições e por fim, no limite do meu cansaço, fez com que me perdoasse. A certa altura, deixei de ser condescendente com o que é fácil ou imediato e passei apenas a suportar o bom que trago cá dentro, com toda a muita saudade que te tenho, com a cabeça erguida e o coração aberto.
Eu bem sei minha querida, que ao contrário do que possa parecer, passar-se deste conceito a actos tão concretos como esta carta que agora te escrevo, não nos é tão fácil quanto pensamos. É qualquer coisa que tem de ser vivida, e que leva a que nos superemos, elevando-nos da condição humana. Como disseste, fomos feitos para o sentir, mas fabricá-lo, não é de nós. Talvez seja por isso que se acredita em Deus.

sexta-feira, 5 de agosto de 2011

8. A chegada



Foi num dia ensolarado, mesmo no pino do verão argentino, que cheguei a Buenos Aires. No aeroporto internacional de Ezeiza esperava-me o tio Vasco, essa figura quase lendária do meu imaginário. Era um homem de cabelo grisalho, que apesar dos seus cinquenta e poucos anos, era encorpado, alto e bem-parecido. Como era de esperar, fui encontrá-lo mesmo à porta das chegadas do terminal A com a sua exemplar pose de príncipe, impecavelmente trajado com o seu fato beije, camisa branca sem gravata, lenço de seda branco, paez e panamá. Já não o via desde os meus tempos de criança e que saudades eu tinha dele. Lembro me de passar toda a infância e adolescência a ouvir histórias daquele irmão da minha mãe que aos vinte e um anos de idade tinha sido expulso do país pelo próprio pai.
Consta que era conhecido por toda a Lisboa não só pelo seu aspecto de estrela de cinema que deixava todos em alvoroço, mas também pelo seu desinteresse por tudo o que considerava ser excessivamente sério, pela sua imprevisibilidade e gosto em chocar os outros que roçava a extravagância, mas também pela sua fome de viver, que o levava a embarcar ainda adolescente em viagens que ficavam conhecidas pelas aventuras mais inacreditáveis, seja pela Galiza com os amigos, na feira da Golegã ou nas surf trips que já na altura fazia com frequência do Minho a Tavira, atascando na areia incontáveis vezes o seu Fiat 127 carregado de pranchas e a que os seus amigos carinhosamente alcunharam de tractor.
As histórias do tio Vasco eram um dos light motifs mais correntes de conversa entre a sociedade lisboeta de todas as idades, variando as opiniões consoante as idades. Para os mais novos era visto como um herói, enquanto que para a geração dos pais era tido como um caso perdido, um mais que provável futuro drogado ou caso de polícia. Era de facto um tipo muito especial: passava a vida nas festas mas acordava sempre cedo, todas as manhãs para um passeio, geralmente na Baixa. Ocasionalmente corriam aqui e ali histórias em cenas suas de pancadaria na noite, mas na verdade todos em Lisboa sabiam onde o encontrar. Passava muitas manhãs na pastelaria Bernard, mesmo ali na Rua Garrett, ora a ler os jornais do dia, ora devorando os existencialistas Simone de Beauvoir, Nietsche e Jean-Paul Sartre ou as obras de ficção de Isaac Asimov e Arthur C. Clarke, quando não estava animadamente a pôr a sua correspondência pessoal em dia, ali mesmo na esplanada. Fumava compulsivamente despachando uns dois ou três maços de tabaco por dia e quando não estava a viajar dormia sempre a sua siesta. Dizia-se, com mais maldade do que outra coisa que todos os meses tinha uma namorada nova. À sua volta persistia um tumulto constante, muitas vezes empolado pela imaginação alheia, mas com o passar do tempo foram-se inevitavelmente somando novas histórias de copos, amores e zaragatas. A sua relação com o meu avô era tempestuosa porque se recusava a trabalhar no negócio de família ou a terminar o curso de Economia, mas gostavam muito um do outro e sempre tiveram entre si uma relação de respeito. Curiosamente entendiam-se bem e apesar de o filho não preencher as expectativas do pai, nenhum dos dois via o outro como uma desilusão.
Até que um dia por motivos que nunca foram completamente esclarecidos, o meu avô João, exasperado e sem conseguir dominar o génio e a rebeldia do filho, meteu-o num avião para Cabo Verde só com um bilhete de ida. O destino era cidade do Mindelo, na ilha de S. Vicente. Quem o esperava era o empresário local, Senhor Manuel José, que tinha uma dívida antiga ainda por saldar para com o meu avô. O tio Vasco foi bem recebido e deram-lhe um trabalho na empresa Manuel José & Filhos, Lda. que se dedicava ao trading entre ilhas e internacional. A empresa comprava e vendia contentores com todo o tipo de bens, dirigidos a mercados espalhados pelo mundo inteiro, especialmente aqueles onde se encontravam fixadas comunidades de emigrantes cabo-verdianos e portugueses. Desesperançado e contrariado, o tio lá aceitou o desafio. Como de início não conhecia ninguém, refugiou-se no trabalho abraçando com abandono e dedicação a posição que lhe foi oferecida, tendo-se tornado num dos melhores traders da companhia.
Ao fim do segundo ano já conhecia a ilha inteira e todos o conheciam. Não era um meio muito grande, mas seja como fosse, o tio Vasco nunca passava despercebido. Tinha um carisma muito particular, uma boa memória que aliada a uma mistura de rapidez de raciocínio com atrevimento, o permitiam falar sobre quase tudo, fosse com quem fosse. Também tinha as suas namoradas, mas parecia que o ambiente na ilha lhe estava a fazer bem. A vida social era infinitamente mais sossegada do que aquela a que estava habituado em Lisboa e, a par do surf, que com excepção do seu amigo fotógrafo Toninho — mais tarde dono da única loja de fotografias da ilha de S. Vicente — mais ninguém praticava, começou a interessar-se pela pintura. Dizia que em S. Vicente havia tempo para tudo e angustiava-lhe a falta de cor daquela paisagem árida da ilha, que lhe fazia falta o verde e o rumor da vida, aquele barulho de fundo quase imperceptível da natureza que no continente se ouvia e que a maior parte de nós confunde com o próprio silêncio. O tio Vasco até hoje diz muitas vezes que foram duas as coisas que na vida lhe ensinaram o que era o silêncio: Cabo Verde e as mulheres.
Mas todo aquele silêncio das ilhas soava-lhe mais a ausência de vida e despertava-lhe uma solidão quase sufocante. Tinha muitas saudades da sua mãe e do seu pai, que o tinha aturado mais do que ele teria sido capaz, mesmo num filho. E por mais que tivesse saudades de Lisboa e dos amigos que ficaram para trás, sabia que tanto o Mindelo como Lisboa eram pequenas demais para ele. Cabo Verde acabou por ser um importante ponto de passagem para um homem que naquela altura precisava sobretudo de reunir as tropas do seu exército interior e de escolher o próximo destino pelo seu próprio pé. Não se pode dizer que tenha feito fortuna em Cabo Verde, mas a vida no Mindelo era simples e frugal e o seu contributo na empresa de trading do Senhor Manuel José rendeu-lhe uma poupança suficiente para, passados dois anos e meio, rumar para o seu próximo destino: Buenos Aires, a Paris da América do Sul.
Ali chegado, foi trabalhar numa das empresas correspondentes da Manuel José & Filhos, Lda. onde como em Cabo Verde veio a ter sucesso. Fixou-se no bairro da Recoleta e frequentava os bares, milongueras e tanguerias da moda onde se ouvia e dançava o tango e fez muitos amigos entre a classe alta portenha. Com o seu aspecto fidalgo e semblante ligeiramente altaneiro não passava despercebido em lado nenhum, nem mesmo em Buenos Aires. Até que um dia, apresentada a oportunidade, juntou-se a mais três ou quatro amigos endinheirados e juntos compraram um dos maiores e mais reputados cafés da cidade: o centenário La Biela.
Depois de um longo e afectuoso abraço que imediatamente fez desaparecer os mais de dez anos que passaram desde a última vez que nos vimos, entrámos no seu antigo Wolkswagen Jetta castanho claro e seguimos juntos, cidade adentro.

7. A partida


Parti para Buenos Aires na madrugada do dia 10 de Fevereiro de 1981. Lembro-me que nessa terça-feira levantei-me no instante imediatamente anterior ao toque do despertador, mesmo a tempo de estender o braço e de o impedir de me acordar. Dei um salto da cama ainda a sacudir da memória um sonho qualquer em que, como de costume, tu entravas e em que caminhávamos juntos na praia, apanhando pedras lisas e comendo lapas cruas na foz do rio Mira.
Tinha muitas saudades tuas, mas essas iam custar mais a sacudir do que o sonho que a memória guarda nos primeiros instantes da manhã. Era dia de atravessar o Atlântico para um novo começo, e eu tinha mesmo de me pôr a andar daí. Aquele avião é que eu não ia perder de certeza!

Acho que todos vivemos dilemas existenciais destes, que apesar de nos parecerem evidentes, são a maior parte das vezes óbvios demais para serem notados. É que se repararmos bem, entre as nossas extremidades vivemos em dois mundos completamente distintos. Os nossos pés nunca estão em dois lugares ao mesmo tempo e por isso, para passarmos de um lugar para outro, temos que pagar o tributo ao tempo e espaço que fica entre ambos, investindo o número de passos necessários a lá chegar. Quanto a isso não há nada a fazer. Mas ao contrário dos pés, a nossa extremidade oposta permite-nos estar em dois locais ao mesmo tempo. E saltar de um tempo ou lugar para outro, sem termos de nos dar ao trabalho de percorrer o espaço que medeia entre ambos. Como eu, que naquele momento estava prestes a entrar num avião, ansiando pelo futuro, ao mesmo tempo em que estava consciente de que o meu coração ainda vivia no passado.
Talvez seja por isso que o nosso cérebro tem duas metades. Uma, para pensar e viajar no mar dos sonhos e das memórias e a outra para controlar o corpo, e fazer a diplomacia necessária entre o corpo e a mente, entre o viajante e o sonhador. Porque todos andamos repartidos entre viagens intermitentes no tempo, revisitando outros lugares num constante regresso ao passado, e pela tendência natural de quem tem os pés bem cravados no chão, de se deixar levar por eles, que nos querem fazer dançar e andar para a frente. Que insistem em nos levar com eles, como se ansiassem pelo futuro ainda mais que nós.
Estava nesta horrível luta interior, dividido entre querer-te, que me pedia para arrombar a porta e fazer uma cena, e respeitar-te, que me levava a abrir mão de ti e deixar que fosses tu a escolher o teu caminho. Acabei por chegar à conclusão que naquele momento o amor posto em prática era respeitar a tua escolha, fosse ela qual fosse, custasse o que custou. E para o bem ou para o mal, este amor, escolhi vivê-lo assim.

Já no aeroporto, de check in feito e os headphones na cabeça, despeço-me ultima vez da minha vida enquanto aguardava pacientemente o embarque.
Lembro-me de pensar na maneira como, depois da primeira vez em que por acaso nos vimos, fomos apresentados um ao outro, numa festa em casa de um amigo comum. E de como me apaixonei imediatamente no momento em que fomos apresentados e em que nos reconhecemos olhando-nos olhos nos olhos, sorrindo. Também não me esqueço de apenas segundos depois ter-me voltado para o Domingos Feliciano e de lhe ter dito: “desconfio que se esta miúda quisesse virava a minha vida do avesso.”. E viraste mesmo.
Todos os amores surgem de uma fusão irrepetível entre duas pessoas, cuja união é única como uma impressão digital. E por isso, cada um tem uma maneira própria de ser vivido. Enquanto uns perduram, outros nascem e morrem num instante. Mas não são menos verdade, nem menos amor. Escolhi não entrar naquela guerra, talvez por cerimónia respeito ou cobardia, não sei. Nem nunca percebi muito bem se fui bestialmente forte ou especialmente fraco. Mas naquela altura achei que era tempo de me retirar e preferi a luta interior a tentar mudar o mundo a partir pedra com as próprias mãos, desistindo de viver o que poderia ter sido pelo que é, aqui e agora. Aceitando o amor que nos escapa por entre os dedos da mesma maneira que se aceita aquele que fica connosco. Sabendo viver cada amor que se tem, sem medos, rodeios ou reservas, mas também sem imposições, de coração aberto e a cabeça levantada. Às vezes, simplesmente guardá-lo cá dentro. E seguir caminho.

Sentado no avião e voltado para a pista enquanto este acelerava, observei pela última vez aquela lenta dança comandada pela torre de controlo. Ao descolar reconheci que aquela era uma generosa segunda oportunidade que a vida me reservava. Uma oportunidade única para começar de novo, apesar de todo o ressentimento, de todo o amor e de toda a saudade. E que a esperança contida nessa ideia por si só bastava para me dar toda a força e a tranquilidade que me andavam a faltar nos últimos tempos. Realmente, é mesmo a esperança que andamos, esse cocktail inflamável feito de afectos e de mudança que me ia ajudar a criar as novas memórias de que eu tanto precisava para te esquecer.
Buenos Aires seria a nova página em branco onde só iria entrar o que eu quisesse. Sem manchas, rasuras ou ilusões.

6. Resolução

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Há muito que aprendi que a concordância de sentimentos tem tanto a ver com a mútua simpatia entre cromossomas, a frequência de onda no espírito e o rolar da pele sobre a pele, como com sentido de oportunidade. E tenho que reconhecer que as nossas vidas tinham começado já a tomar rumos diferentes, mesmo antes de nos termos conhecido. Tinha acabado o curso, estava num limbo de soluções, à procura do meu primeiro emprego e doido para ser atirado aos leões. Precisava de expulsar este peso que carregava por dentro e que me pesava como uma âncora, impedindo-me de seguir em frente. Não tinha nada a perder. Por isso, quando o meu tio Vasco, que vivia em Buenos Aires, me desafiou para ir até lá passar uma temporada, aceitei logo sem pestanejar. Sinceramente, naquele momento mudar de hemisfério parecia-me suficientemente drástico. Era exactamente o que eu estava a precisar para aguentar airosamente aquele violento revés do meu coração de iniciado, e curar-me do estado deplorável em que me encontrava. Não sabia o que me ia acontecer e na pior das hipóteses ficaria por lá apenas umas semanas. Tinha o tio para tratar de mim e mostrar-me os cantos à cidade. Com sorte, qualquer coisa haveria de aparecer, ali ou noutro lugar. E durante as semanas que seguiram, deixei aquela ideia crescer dentro de mim, ganhando força a cada minuto que passava.
De facto, as pepitas que trazemos no bolso não provam nada. Dão-nos esperança, mas são só o que são. Umas pedrinhas preciosas que trazemos no bolso que não provam a existência da mina que juramos ter descoberto, e que não têm mais nenhuma utilidade do que nos encher de esperança. Mas a esperança Inês, essa sim, é preciosa, e muito. Quem já teve a sua quota-parte de perda sabe bem a importância de manter viva uma boa dose de esperança e de não nos deixarmos desanimar de cada vez que somos obrigados a reconhecer a perda, a tirar as pepitas do bolso e a guardá-las na prateleira.
 Acho que o tempo nos vai ensinando o que é verdadeiramente importante. Sobretudo ensina-nos que não nos podemos dar ao luxo de ficar com medo de nos deixarmos guiar pelas pepitas que trazemos no bolso. Mas quando já sofremos muito, além de sabermos que aguentamos muita coisa, sabemos também que para sermos felizes não temos que passar por tudo. Nesses momentos, basta-nos olhar em frente com a certeza de que conseguimos chegar às coisas boas e simples da vida com facilidade. E voltar a trabalhar para que o nosso dia-a-dia se volte a transformar numa fábrica eficiente de outros momentos igualmente geniais.
 Quando as saudades tornam-se difíceis demais para suportar, não nos resta outra alternativa do que aprender a olhar o futuro de frente, com a mais genuína saudade daquilo que no nosso íntimo sabemos que nos espera. De tudo o que havemos de construir novamente, nem que tenhamos que morrer a tentar. E naqueles dias, enquanto tentava arquivar aquelas pesadas pepitas douradas que trazia comigo, só conseguia pensar no vazio que ficava no seu lugar. No vazio que permanecia em lugar dessas memórias que pouco tempo antes serviam para me guiar na esteira do nosso amor, como promessas de um futuro em que finalmente tudo encaixava na perfeição. E que agora não passavam de pedras que me pesavam no bolso, enchendo-me de desânimo e atrasando-me a caminhada. Era altura de levantar a cabeça e pensar que tudo o que nos aconteceu, de bom ou de sofrido, estava agora a pedir-me que preenchesse esse espaço vazio. E de facto, esta oportunidade de vir para Buenos Aires não podia ter aparecido em melhor altura.
 Assim, logo depois do Natal, poucos dias depois de saber que te irias casar, já estava totalmente decidido em apanhar o primeiro avião para bem longe daí.
Na minha última tarde em Lisboa, só precisava de me encontrar com o mar e de me despedir, naquela que acabou por ser uma das minhas últimas sessões de surf em Portugal. As condições estavam óptimas e mesmo no final, enquanto esperava mais uma para sair, assisti a um pôr-do-sol memorável. Estava já sozinho, e os poucos que partilharam comigo aquelas ondas já tinham saído da água. Via apenas contornos, e tudo pintado a duas cores: o preto e o dourado. Na superfície da água, os reflexos preto e dourados contrastavam com o mar ao longe quase negro, o prenúncio da noite que se avizinhava. Lembro-me como se fosse ontem que as ondas nesse dia estavam de tal maneira perfeitas que não conseguia sair da água e acabei por ser expulso pela falta de luz. Naquele momento o cenário parecia-me parte de um rito religioso de passagem ao lado de lá da dor que eu imaginava possível. Apanhei uma última onda mas à saída reparo pelo canto do olho em mais um set que se aproximava no horizonte. Não resisti a remar de volta para fora, para lá da zona de arrebentação para apanhar a onda da despedida.
Foi-me difícil deixar esse mar que tanto me tinha dado e que mesmo naquela idade já conhecia tão bem, como se conhece um velho amigo. Um amigo que me diz sempre a verdade, que me recebe como venho e me devolve sempre ao mundo como sou. Por essa altura já tinha compreendido que apenas começamos a amá-lo verdadeiramente quando com o tempo, aprendemos a ouvir o que ele tem para nos dizer
Lembro-me de fechar os olhos por uns instantes enquanto aguardava pela última onda e de sentir na cara o calor dos últimos raios de Sol. E de desfrutar o silencio nessa última surfada, apenas cortado pelo som das ondas que rolavam ao longe. A diferença na quantidade e no ângulo da luz altera-nos a percepção das distâncias e quando a última onda do dia chegou, parecia um monstro em forma de uma escura parede líquida que se abeirou de mim para com ela desabar no vazio, num grito de guerra de quem se força a não olhar para trás. Deixei-me deslizar por aquele enorme vulto num gesto quase submisso e lavado em lágrimas de água salgada. Perto da praia, e já encostado à parede líquida, notei na transparência da lente que me envolvia e que a luz do sol pintava de dourado em contra-luz. Estava sereno e estava decidido. Não ia olhar para trás.
As despedidas são quase sempre solitárias. E a minha foi certamente a mais solitária de todas as que fiz na minha vida. Estava-me a despedir interiormente da minha vida em Lisboa, dos meus pais e de ti. Sabia que tão cedo não iria voltar a Portugal. E enquanto subia a praia em direcção ao carro, voltei as costas a todo aquele cenário, despedindo-me também de tudo o que ia deixar para trás, como se se tratasse de uma pessoa. Sentia-me pincelado por dentro em tons de ressentimento, saudade e carinho. E estava com a mais profunda certeza de que aquele amor sem futuro que tanto me doía era em mim tão real, como aquela última onda que desci a todo o gás, mas que ficou para trás, desaparecida contra a areia. Sem qualquer outro rasto do que aquele que ficou na minha memória.