Tenho me lembrado muitas vezes da nossa última conversa naquele dia em que dissertámos no profético Buenos Aires sobre a natureza do amor e sobre onde é que todos nós ficamos em relação a ele. Tenho sobretudo feito um balanço sobre o caminho trilhado ao longo destes últimos vinte anos. Foram anos passados noutro hemisfério e a meio mundo de distância, em que procurei esquecer a tua memória enchendo-me de certezas e forçando-me em frente, de proa apontada a um porto de chegada onde tudo faça sentido, incluindo entregar a vida por alguém. Demorou muito tempo até perceber que por mais que a brisa do tempo me leve, sarando as feridas e amansando a dor da tua ausência, tanto o esquecimento como o amor não se procuram. São eles que no fim nos hão-de encontrar a nós.
E pelo que tenho visto, minha querida Inês, nesta vida que é cada vez mais feita de enganos e de aparências, o amor já não é qualquer coisa a que as pessoas atentem, já não é um valor que se respeite ou que condicione as nossas escolhas. Vivemos novos tempos em que parece que a sobrevivência nos impõe novos valores. Em que um amor verdadeiro já não é aquela força motriz de sonhos a ser defendida como um ponto de honra, contra tudo e contra todos, como sinal de força e lealdade para consigo mesmo, e para com a réstia de divindade que ainda transportamos no sacrário do nosso templo interior. O que eu hoje vejo é o amor ser distratado por quase todas as gerações como a droga dura dos tempos modernos. Sujeita a outras forças, outras necessidades, outros factores. Uns novos, outros nem por isso, mas todos eles igualmente inconfessáveis.
Também eu, umas vezes por comodismo, outras por uma questão de sobrevivência, tenho caído no erro de desbaratar este tesouro, enquanto, como o resto de nós, aguardo por alguma coisa que me venha libertar desta tua presença indesejada que só historicamente pertence ao passado, porque na verdade sempre esteve aqui presente. De tal maneira que há muito que deixei de me queixar aos outros por pura vergonha de admitir que é em ti que eu penso, todos os dias. E quando me abro, ninguém percebe que é de ti que eu falo. Nos dias que correm guardo só para mim o vexame da impotência que sinto quanto às muitas saudades que te tenho.
Com o tempo acabei por me conformar com a tua presença imposta no meu coração com uma força que eu não compreendia. Mas como se te sufocasse durante o sono, exorcizava-te todos os dias e noites, com a ajuda da bebida, das mulheres e das longas horas de trabalho em que me deixei inundar, na firme esperança de um dia te expulsar da minha vida. Durante vários anos vivi contigo uma amarga e privada história de amor, imerso numa autêntica vida dupla. Porque nenhuma das mulheres que se cruzaram comigo chegaram a perceber que de facto, era contigo que eu me deitava todas as noites, para nas manhãs seguintes descobrir que afinal, estava a acordar sozinho.
Acho que à medida que os anos passam, vamos criando películas exteriores que endurecem a nossa pele. E que nos fazem perder aquela película transparente de inocência de que necessitamos para amar com grandeza, altruísmo e abandono e para sermos capazes de defender as nossas memórias mais exemplares, com todas as forças, até ao último suspiro. Cada um destes cabelos brancos que ao longo dos anos me foram aparecendo, representam um momento diferente em que, por perda da inocência, neguei a mim mesmo a possibilidade de deixar que essa luz entrasse na minha vida. E talvez por causa disso, dia após dia, também eu fui perdendo a capacidade para amar novamente.
Dei por mim a reparar que, depois destes anos todos, o verdadeiro amor, esse, estava escondido e enterrado no passado. E que as ilusões que aqui e ali fui criando em torno dessa ideia, não passavam afinal de fugas à angústia provocada por esse meu beco sem saída. De fugas que acabaram por se revelar autênticas concessões a essa subtil tendência de retirarmos da equação das nossas vidas a luz de inspiração que vem de cima e que se manifesta cada vez que alguma coisa ou alguém nos faz desviar o olhar do escuro da nossa grutinha privada. Essa tendência a que hoje em dia teimamos em não resistir, para minimizar o que poderia ser um amor bem vivido, preterindo-o por uma outra coisa a que damos o mesmo nome. Mas que na realidade não passa afinal de um simples meio que todos usamos para fugir ao terror particular de cada um, através do afecto de quem não amamos, do dinheiro que não temos, ou da atenção de que julgamos necessitar.
Mesmo assim, é importante lutarmos para não perder a capacidade para nos apaixonarmos. Termos a capacidade de nos apaixonarmos é a prova acabada de que ainda não sucumbimos ao mundo. De que ainda não suicidámos a nossa criança interior. Quem se apaixona fecha uma porta e abre outra. Fecha a porta de entrada dos problemas, das angústias e dos desesperos da vida, pois vê no seu recém encontrado amor a força, a solução e a saída para todos eles. Mas também abre uma porta que por vezes fica escancarada para nos marcar para toda a vida. É o obturador do coração, feito para abrir e fechar por breves instantes, apenas o tempo necessário para na alma tirar a fotografia de cada momento inesquecível. Mas que se não tivermos cuidado, pode demorar-se a ponto de deixá-la queimar-se por completo. Quando isso acontece, tudo, incluindo funções vitais, os instintos ou a moral passam para segundo plano, e expomos o nosso eu essencial aos caprichos dos outros e dos elementos. E aí, ou sofremos sozinhos essas queimaduras inúteis e cataclísmicas, curando as feridas e encaixando as derrotas com dignidade, ou negociamos com o outro uma forma de escrevermos nas páginas ainda em branco desse caderno qualquer coisa que ainda possa ser aproveitada. E de assim, com a ajuda dos cacos que ainda restam da abertura descontrolada do nosso obturador interior, construirmos um futuro feito de perdão, oferecimento e partilha.
O que te quero dizer minha querida, é que mesmo depois destes anos todos a tentar esquecer-te com remendos e pensos rápidos, ainda acredito no amor. Mas não no amor de que se fala por aí, em voz alta, nos cafés. No amor incondicional que nos leva a fazer disparates, que nos leva a rasgar a camisa como nas telenovelas venezuelanas, dar um murro na mesa e depois virá-la ao contrário no meio da festa enquanto a madrinha prova a sobremesa. No amor desinteressado, irmanado e infantil entre um homem e uma mulher, com as mãos em posição de dar e os olhos postos no futuro. Naquele que faz o mundo desaparecer e passar para segundo plano. No amor vivido em tolerância, amor, entrega e respeito, essas coisas que hoje em dia não se vê muito, porque dão trabalho e requerem coragem. Custam a negociar, moldar, aprender, porque implicam ceder. Implicam convidarmos o outro ao fundo das nossas inseguranças, incertezas e hesitações. E implicam mergulharmos nas profundezas mais sombrias de quem gostamos e ainda assim regressarmos, de amor intacto.
Mas se já é raro sentirmos um amor verdadeiramente puro por alguém, pleno de conquista, satisfação, camaradagem e entrega desinteressada, que nos toque nas teclas todas e faça sentido nos cantos da nossa cabeça e em cada pedaço do nosso corpo, mais raro ainda é aprender, negociar e construir com quem nos corresponde, uma relação que justifique nada mais, do que abdicar de tudo o resto.
O principal problema do amor, nos dias que correm, é que a certa altura o que ele nos pede é sacrifício. Às vezes até heroísmo. Porque quando nos entregamos assim, depois não nos podemos queixar se partirmos a mão na mesa, se formos expulsos da festa, ou se a madrinha ficar com a blusa cheia de nódoas. E apesar de não existir mais ninguém tão preparado para se sacrificar como aquele que ama, hoje em dia ninguém está para se chatear. Andamos todos de crista tolhida pelo medo. Já ninguém dispensa a sua bolha particular de segurança, as suas portas blindadas, fechaduras, trancas e trincos, os seus telemóveis e seguros de vida. Já ninguém viaja sem cinto de segurança, arrisca o pescoço pelos outros ou se atira de cabeça da prancha mais alta da piscina para conquistar a miúda mais gira do sítio. Poucos têm o estofo ou a inclinação para carregar o outro às costas. E sobretudo, com a perda de inocência, poucos acreditam que o outro os carregaria, se fosse preciso. Até percebo que nos protejamos destas desilusões. O que eu não percebo é que, sem nos darmos conta, com isso nos estejamos a proteger desnecessariamente da própria vida.
Por causa do medo, o amor tem-se tornado cada vez mais numa palavra vazia que ao longe acenamos frequentemente uns aos outros, como uma bandeira, de ânimo leve e consequências desastrosas. Uma palavra que nos apazigua e que nos enche de ilusão e conforto, mas sem um significado real por não ser realmente vivida. Talvez seja por isso que hoje em dia, tanto o amor como o próprio Deus estejam a perder curso legal na economia paralela dos afectos, empacotados em caixotes empoeirados e relegados para as caves da memória, porque causam alergia. É por isso que esse estado de entrega permanente que se satisfaz em si mesmo, seja cada vez mais visto ora como uma doença a evitar, prevenir ou debelar, ora como uma droga com que nos auto-medicamos sob a forma das mais variadas promessas de que não temos verdadeira intenção de cumprir. E enquanto isso acontece, preparamo-nos para um novo dia sem acreditar em nada exterior a nós próprios e transformamos o amor numa mentira funcional que exige disciplina e autocontrolo. Que naturalmente pede que declaremos guerra a nós próprios, ao encantamento descontrolado típico de quem está apaixonado e às várias reacções fisiológicas que tendem para essa indesejada revolução amorosa.
E assim, no meio do reboliço do dia-a-dia, facilmente nos descartamos uns aos outros com a facilidade de um simples estalar de dedos sempre que, por qualquer razão, a pessoa a quem declarámos amor deixa de nos servir ou de fazer aquele sentido com que em tempos idealizámos. E assim permanecemos, cada vez mais fechados e votados ao nosso canto, de braços cruzados e à espera de um milagre. E todos nós sem excepção, mesmo aqueles que não acreditam em milagres, desejam que eles aconteçam. Mas os milagres, Inezinha, esses, não existem, a menos que aconteçam primeiro dentro de nós. Há que perder o medo e confiar. E ver como o tempo é nosso amigo que além de ajudar a suavizar o passado dorido, amansando as feridas que a água salgada não deixa sarar, muitas vezes é ele mesmo — e mais ninguém — que nos acaba por mostrar aquilo que sentimos e quem verdadeiramente somos. Que nos dá as lições, que nos perdoa e nos dá a redenção de que necessitamos.
Daí esta carta que te escrevo, que é acima de tudo sinal de fidelidade a tudo isto que o tempo me mostrou e que durante tantos anos a negação e o medo não me deixavam ver. Deu-me todas as lições e por fim, no limite do meu cansaço, fez com que me perdoasse. A certa altura, deixei de ser condescendente com o que é fácil ou imediato e passei apenas a suportar o bom que trago cá dentro, com toda a muita saudade que te tenho, com a cabeça erguida e o coração aberto.
Eu bem sei minha querida, que ao contrário do que possa parecer, passar-se deste conceito a actos tão concretos como esta carta que agora te escrevo, não nos é tão fácil quanto pensamos. É qualquer coisa que tem de ser vivida, e que leva a que nos superemos, elevando-nos da condição humana. Como disseste, fomos feitos para o sentir, mas fabricá-lo, não é de nós. Talvez seja por isso que se acredita em Deus.