Como já devem ter reparado, há já algum tempo que não escrevia nenhum texto na minha rubrica “apoio jurídico sentimental”, que ao contrário das “viagem na maionese”, “curtas carinhosamente ficcionadas” e “artigos de opinião sobre os mais variados tópicos habitualmente objecto de generalizações abusivas”, tem de facto andado um bocado parada. Penso que existe no entanto espaço para vos fornecer mais uma peça de labor jurídico-hermenêutico que concerteza será da maior utilidade, a adicionar aos conhecidos “minuta de CONTRATO DE NAMORO” e da “minuta de DECLARAÇÃO / ATESTADO DE PAIXÃO”. Trata-se de um conjunto de textos que têm contribuído para a felicidade de milhares de casais por esse mundo fora, pois através de linguagem técnica, simples e precisa contribuem para a clarificação de situações e perturbações típicas de que se verificam em certas alturas da vida em que se vivem autênticas tempestades emocionais, constipações mentais ou a típica ensandecência passageira de quem perdeu a cabeça por alguém.
Fui abordado muito recentemente por um amigo pedindo que lhe escrevesse uma carta de resposta à interpelação de um vizinho descontente com determinados "ruídos nocturnos". Trata-se de um caso de alguma complexidade jurídico-sentimental e uma situação que em alguns casos poderá assumir contornos especialmente dramáticos.
Daí que tenha elaborado desta feita uma “minuta de carta de resposta a vizinho descontente” cujo teor passo a reproduzir, para uso de todos.
«Exmo(a). Vizinho(a)
[inserir morada]
[local], [data]
Assunto: [breve troca de impressões no elevador do dia …/…/…], ou [sua carta do passado dia …/…/...].
Exmo(a). Senhor(a),
Acuso a chamada de atenção que me fez no elevador no passado dia […], que mereceu a minha melhor atenção e a que passo a responder.
Antes de mais, deixe-me dizer-lhe que, muitíssimo para além da legislação sobre distúrbios nocturnos que o(a) Exmo(a). Vizinho(a) com toda a gentileza citou, o que me preocupa é, isso sim, a sua tranquilidade, o seu sossego e o seu descanso, como aliás a de todos os meus vizinhos, e espero, como é óbvio, que todos saibam também respeitar o meu descanso, espaço e tranquilidade pessoais.
No entanto, muito estranhei os seus comentários, principalmente por duas ordens de razão que passo a enunciar. Em primeiro lugar, pelo tom com que se dirigiu a mim, pois como compreenderá não o conheço de lado nenhum, nem tenho infelizmente qualquer recordação de V. Exa. alguma vez me ter sido apresentado. Depois, porque apesar de referir “lamento ter de chegar a este ponto”, ameaçando “tomar outras medidas”, “ruídos nocturnos que tem ouvido nestes últimos tempos”, a verdade é que até à data nunca tinha sido por si abordado relativamente a qualquer ruído incomodativo, o que não pode deixar de ser bom sinal. Assim, congratulo-me portanto por iniciarmos por esta via uma primeira e saudável comunicação entre vizinhos, que urge mantermos com os mais elevados padrões de moderação, educação e da indispensável cooperação, que caracteriza as boas relações de vizinhança.
Por outro lado, estranhei a referência por si feita a “constantes gemidos, uivos e horríveis batuques a horas desapropriadas, que impedem o normal funcionamento da minha vida, uma vez que provocam graves distúrbios no meu sono e sossego.”. É que, sem querer entrar aqui em debate sobre a intensidade ou sobre a origem do ruído que efectivamente entra na sua fracção, a verdade é que desconheço por completo que constantes barulhos noturnos sejam esses, que saiam da minha e que sejam de tal modo intensos que possam causar impacto suficiente para impedir o normal funcionamento da sua vida, e de serem os causadores dos graves distúrbios a que se refere.
No entanto, e sem por em causa que de facto existe qualquer coisa que o(a) perturba ― e que deverá ser seriamente abordado através de psicoterapia intensiva e da mais variada farmacopeia disponível na internet ― sugiro que tente arranjar companhia. Verá que a sua solidão possui propriedades alucinogéneas que serão rapidamente compensadas pelo efeito profiláctico de uma boa companhia, de preferência do sexo oposto.
Adicionalmente, e uma vez que além da por si mencionada “legislação sobre ruídos nocturnos” existem outros bens jurídicos também eles dignos de protecção legal, que conferem aos particulares verdadeiros direitos subjectivos, tais como o abuso de direito, os direitos de reserva da intimidade da vida privada e familiar dos cidadãos, muito lhe agradecia que da próxima vez que verificar a existência de qualquer ruído, cheiro, trepidação ou premonição que ainda que remotamente suspeite possam vir da minha fracção, entre imediatamente em contacto comigo através do telefone nº. [… … …].
Isto porque, como saberá, o comentário com terceiras pessoas sobre especulações da minha vida privada, além de desagradável, é também uma violação daqueles direitos, também eles legislados. Além disso, será duvidoso que esses terceiros possam, sem violação daqueles direitos, ter algum conhecimento ou influência sobre o que se passa numa fracção que não lhes pertence, e de cujo agregado familiar não fazem parte.
Assim e no espírito da boa vizinhança, informo que de futuro terei atenção a ruídos oriundos da minha fracção e peço-lhe que logo que sentir alguma perturbação que suspeite possa ter origem na minha fracção e que tenha o impacto suficiente para impedir o normal funcionamento da sua vida, ou de lhe causar graves distúrbios no seu sono e sossego, que entre em contacto comigo para o meu número de telefone acima indicado.
Aproveito a ocasião para apresentar os meus melhores cumprimentos,
[assinatura]»
Tendo sido elaborada para uso geral, esta minuta deverá sofrer os ajustamentos que forem impostos pelas circunstâncias do caso concreto e com o prévio parecer de alguém legalmente habilitado a prestar consultadoria jurídica, não se responsabilizando o signatário pela sua utilização inapropriada.
JAO
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