Foi
preciso chegar aos quarenta anos de idade para te escrever esta carta e
reconciliar-me com o facto de te ter virado as costas sem te dar uma palavra
sequer, por mais inútil que ela me parecesse. Acho que devia ao menos ter-me
despedido de ti, antes de ter ficado fiel depositário deste amor, que
permanecerá vivo e desemparelhado, suportando o peso das horas e dos dias, à
espera que um dia lhe seja dado uso. Mas há coisas bem piores do que esperar, já
que se pensarmos bem, o segredo da infelicidade é querer-se tudo para já.
nos trai, aprisiona ou desilude. São os
outros.
Para
isso, é preciso termos a coragem de não permitir que as dores do mundo nos
tornem mais pequenos e nos retirem a coragem para decidirmos o que fazer com o
que sentimos. Porque o amor não tem um nome, não tem uma cara, e certamente não
tem um culpado. É algo que trazemos dentro e que ou deixamos que nos consuma,
ou permitimos que nos anime a partilhar e a construir com os que entretanto
continuam à nossa volta. A vida é isso mesmo: a arte de aprender a conviver com
o amor através do tempo. O amor que no final de contas é o que nos desafia e
ajuda a descobrir a pessoa que fomos feitos para ser. E que nessa medida, se
revela como a única coisa verdadeiramente capaz de nos libertar.
Tudo o
que aqui te escrevo é o beijo de despedida que sempre senti que te devia,
acrescido dos juros das palavras que ficaram por dizer e das que entretanto a
vida me deu para te entregar. Tenho muita pena que tudo tenha ficado como
ficou. Mesmo noiva de outro, o meu amor por ti merecia bem mais do que aquele
cobarde virar de costas de que até hoje não me consegui perdoar. Hoje sei que
mesmo quando somos assaltados pela dúvida, nunca devemos deixar de lutar por
aqueles que amamos.Mas o que
agora importa é este meu beijo que aqui fica, com toda a ternura com que nos
recordo.
Se
reparares querida Inês, a vida e o céu são extremos opostos que têm algo de
fundamental em comum. Uma
coisa que todos reconhecemos em ambos e que se quisermos pode tornar
irrelevante a distinção entre ambos: o encontro. O céu é o lugar de encontro
por excelência, o lugar onde nos prometeram todos os encontros. Onde um dia nos
encontraremos com o Criador, uns com os outros, com os que nos antecederam e
eventualmente, com todos os que vierem depois de nós. Mas ao contrário do céu,
a vida não é um lugar. A vida é um tempo. Um tempo muito limitado, que se
quisermos, podemos também transformar em ocasião para muitos e bons encontros.
Encontros entre pessoas, entre ombros amigos, entre mãos e braços que se
procuram no meio do escuro das lutas do dia-a-dia. A frequência destes
encontros e reencontros é a única coisa capaz de fazer com que a transição
entre a vida e o céu se torne numa passagem suficientemente suave, natural e
indolor para que, com um bocadinho de sorte, nem sequer demos por ela. Como me
teria acontecido se imediatamente depois daqueles nossos quatro meses juntos,
ao invés do atlântico, tivesse atravessado aquela pequena passagem que me
separava de todos os mortos que caminhavam comigo.
Espero
de todo o coração que esta carta te encontre feliz e em paz e espero que Deus
nos dê o tempo e a coragem para que possamos transformar os dias de vida que ainda
nos restam, em tempo de muitos e bons encontros, tanto com quem nos espera,
como com aqueles que amamos.
Obrigado
pelas memórias que nos tenho, Inês. E perdoa-me por ter demorado tanto tempo a
descobrir em mim o homem que sempre mereceste.
Um
beijo do respeitosamente teu,
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