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O meu pai José tinha sido coronel na Força Aérea e havia morrido poucos anos antes, tinha eu catorze. Teve um acidente num festival aéreo muito falado na altura, porque apesar da falha mecânica o piloto poderia ter-se salvo, não fosse a manobra feita no último instante para desviar a aeronave de alguns espectadores que ainda se encontravam na pista. Por esta altura já ninguém falava disso, porque a memória das pessoas é muito curta, sobretudo quanto a bons exemplos. Não sei bem porquê, mas acho que todos temos muito mais tendência para nos lembrarmos das falhas dos outros do que das suas virtudes ou atos de heroísmo. Penso que nos é muito mais cómodo fazer notar uma falha alheia qualquer, cuja comparação nos será em princípio favorável, do que reconhecer os bons exemplos que podem inspirar-nos verdadeiramente, e que às vezes até vêm daqueles que nos são mais próximos. Mesmo que não estejamos disso conscientes, a opção pelo esquecimento, sempre que nos deparamos com o rasto de quem nos merece todo o respeito e reconhecimento, acaba por ser um escape à inevitável confrontação connosco próprios e com as nossas insuficiências. Talvez seja daí que vem a tendência natural do subconsciente humano em guiar-nos para longe dos exemplos que nos possam magoar na comparação. Mas esta viagem que nos traz conforto, não passa de um escape àquilo que às vezes somos e não conseguimos suportar. O esquecimento, quando é possível, leva sempre para muito longe um bom pedaço de nós. Muitas vezes, aquele que ainda podemos mudar. Aquele que ainda podemos alcançar. É o desânimo que acaba por levar a que a memória retenha melhor os maus momentos do que os bons. E se não tivermos cuidado, essa falta de esperança é capaz de nos corroer por dentro, de nos matar aos bocados. Ainda que nos custe, devemos procurar não perder a memória dos bons momentos. Porque são eles a única hipótese que ainda podemos ter, de recuperar aquilo que faz de nós o que somos, ou o que ainda poderemos vir a ser. E por mais que se queira, para o bem ou para o mal, poucas coisas são mais difíceis para um filho, do que fugir ao exemplo do seu pai.

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