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terça-feira, 6 de março de 2012

A má memória dos bons exemplos


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O meu pai José tinha sido coronel na Força Aérea e havia morrido poucos anos antes, tinha eu catorze. Teve um acidente num festival aéreo muito falado na altura, porque apesar da falha mecânica o piloto poderia ter-se salvo, não fosse a manobra feita no último instante para desviar a aeronave de alguns espectadores que ainda se encontravam na pista. Por esta altura já ninguém falava disso, porque a memória das pessoas é muito curta, sobretudo quanto a bons exemplos. Não sei bem porquê, mas acho que todos temos muito mais tendência para nos lembrarmos das falhas dos outros do que das suas virtudes ou atos de heroísmo. Penso que nos é muito mais cómodo fazer notar uma falha alheia qualquer, cuja comparação nos será em princípio favorável, do que reconhecer os bons exemplos que podem inspirar-nos verdadeiramente, e que às vezes até vêm daqueles que nos são mais próximos. Mesmo que não estejamos disso conscientes, a opção pelo esquecimento, sempre que nos deparamos com o rasto de quem nos merece todo o respeito e reconhecimento, acaba por ser um escape à inevitável confrontação connosco próprios e com as nossas insuficiências. Talvez seja daí que vem a tendência natural do subconsciente humano em guiar-nos para longe dos exemplos que nos possam magoar na comparação. Mas esta viagem que nos traz conforto, não passa de um escape àquilo que às vezes somos e não conseguimos suportar. O esquecimento, quando é possível, leva sempre para muito longe um bom pedaço de nós. Muitas vezes, aquele que ainda podemos mudar. Aquele que ainda podemos alcançar. É o desânimo que acaba por levar a que a memória retenha melhor os maus momentos do que os bons. E se não tivermos cuidado, essa falta de esperança é capaz de nos corroer por dentro, de nos matar aos bocados. Ainda que nos custe, devemos procurar não perder a memória dos bons momentos. Porque são eles a única hipótese que ainda podemos ter, de recuperar aquilo que faz de nós o que somos, ou o que ainda poderemos vir a ser. E por mais que se queira, para o bem ou para o mal, poucas coisas são mais difíceis para um filho, do que fugir ao exemplo do seu pai.

Apesar de aquela morte ter-me aproximado muito da minha mãe, a verdade é que nenhum de nós voltou a ser o mesmo. O seu cabelo tornou-se grisalho, vincaram-se-lhe as rugas e os seus olhos assumiram um tom triste. Passou a usar sempre qualquer coisa negra com o que quer que vestisse, provavelmente para condizer com a sombra carregada que a perseguia e as suas amorosas feições não conseguiam disfarçar. Vivia numa espécie de luto permanente que se lhe entranhou no sorriso e que com ela se fundiu. Na verdade julgo que a morte do meu pai aproximou-nos tanto quanto nos separou. Aproximou-nos porque passámos a ser só nós lá em casa. Passei a substituir o meu pai na vida da minha mãe e no quotidiano daquela casa. Bem mais do que queria até. Mas de certa maneira, o seu desaparecimento também acabou por nos separar. Enquanto eu vivia como um jovem rebelde, ávido de futuro e vontade de fugir ao ambiente soturno em que se tornou a vida naquela casa, a minha mãe vivia com os olhos postos no passado, constantemente revivendo episódios ocorridos lá atrás. Ambos sentíamos imensa falta dele. Mas ela não perdia uma oportunidade para reanimar o meu pai para as nossas conversas e de reabilitar para o nosso dia-a-dia a memória de alguém que já não estava ali nem ia estar. Tanto que por vezes parecia não reparar que o filho, que estava sempre ali, e tantas vezes fazia mais do que podia para lhe aliviar a dor, ao tentar parecer-se sempre um bocadinho mais com o seu falecido pai.
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