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Há muito que aprendi que a concordância de sentimentos
tem tanto a ver com a mútua simpatia entre cromossomas, a frequência de
onda no espírito e o rolar da pele sobre a pele, como com sentido de
oportunidade. E tenho que reconhecer que as nossas vidas tinham começado
já a tomar rumos diferentes, mesmo antes de nos termos conhecido. Tinha
acabado o curso, estava num limbo de soluções, à procura do meu
primeiro emprego e doido para ser atirado aos leões. Precisava de
expulsar este peso que carregava por dentro e que me pesava como uma
âncora, impedindo-me de seguir em frente. Não tinha nada a perder. Por
isso, quando o meu tio Vasco, que vivia em Buenos Aires, me desafiou
para ir até lá passar uma temporada, aceitei logo sem pestanejar.
Sinceramente, naquele momento mudar de hemisfério parecia-me
suficientemente drástico. Era exactamente o que eu estava a precisar
para aguentar airosamente aquele violento revés do meu coração de
iniciado, e curar-me do estado deplorável em que me encontrava. Não
sabia o que me ia acontecer e na pior das hipóteses ficaria por lá
apenas umas semanas. Tinha o tio para tratar de mim e mostrar-me os
cantos à cidade. Com sorte, qualquer coisa haveria de aparecer, ali ou
noutro lugar. E durante as semanas que seguiram, deixei aquela ideia
crescer dentro de mim, ganhando força a cada minuto que passava.
De
facto, as pepitas que trazemos no bolso não provam nada. Dão-nos
esperança, mas são só o que são. Umas pedrinhas preciosas que trazemos
no bolso que não provam a existência da mina que juramos ter descoberto,
e que não têm mais nenhuma utilidade do que nos encher de esperança.
Mas a esperança Inês, essa sim, é preciosa, e muito. Quem já teve a sua
quota-parte de perda sabe bem a importância de manter viva uma boa dose
de esperança e de não nos deixarmos desanimar de cada vez que somos
obrigados a reconhecer a perda, a tirar as pepitas do bolso e a
guardá-las na prateleira.
Acho que o tempo nos vai ensinando o que é
verdadeiramente importante. Sobretudo ensina-nos que não nos podemos dar
ao luxo de ficar com medo de nos deixarmos guiar pelas pepitas que
trazemos no bolso. Mas quando já sofremos muito, além de sabermos que
aguentamos muita coisa, sabemos também que para sermos felizes não temos
que passar por tudo. Nesses momentos, basta-nos olhar em frente com a
certeza de que conseguimos chegar às coisas boas e simples da vida com
facilidade. E voltar a trabalhar para que o nosso dia-a-dia se volte a
transformar numa fábrica eficiente de outros momentos igualmente geniais.
Quando as saudades tornam-se difíceis demais para
suportar, não nos resta outra alternativa do que aprender a olhar o
futuro de frente, com a mais genuína saudade daquilo que no nosso íntimo
sabemos que nos espera. De tudo o que havemos de construir novamente,
nem que tenhamos que morrer a tentar. E naqueles dias, enquanto tentava
arquivar aquelas pesadas pepitas douradas que trazia comigo, só
conseguia pensar no vazio que ficava no seu lugar. No vazio que
permanecia em lugar dessas memórias que pouco tempo antes serviam para
me guiar na esteira do nosso amor, como promessas de um futuro em que
finalmente tudo encaixava na perfeição. E que agora não passavam de
pedras que me pesavam no bolso, enchendo-me de desânimo e atrasando-me a
caminhada. Era altura de levantar a cabeça e pensar que tudo o que nos
aconteceu, de bom ou de sofrido, estava agora a pedir-me que preenchesse
esse espaço vazio. E de facto, esta oportunidade de vir para Buenos
Aires não podia ter aparecido em melhor altura.
Assim, logo depois do Natal, poucos dias depois de saber
que te irias casar, já estava totalmente decidido em apanhar o primeiro
avião para bem longe daí.
Na minha última tarde em Lisboa, só precisava de me
encontrar com o mar e de me despedir, naquela que acabou por ser uma das
minhas últimas sessões de surf em Portugal. As condições estavam
óptimas e mesmo no final, enquanto esperava mais uma para sair, assisti a
um pôr-do-sol memorável. Estava já sozinho, e os poucos que partilharam
comigo aquelas ondas já tinham saído da água. Via apenas contornos, e
tudo pintado a duas cores: o preto e o dourado. Na superfície da água,
os reflexos preto e dourados contrastavam com o mar ao longe quase
negro, o prenúncio da noite que se avizinhava. Lembro-me como se fosse
ontem que as ondas nesse dia estavam de tal maneira perfeitas que não
conseguia sair da água e acabei por ser expulso pela falta de luz.
Naquele momento o cenário parecia-me parte de um rito religioso de
passagem ao lado de lá da dor que eu imaginava possível. Apanhei uma
última onda mas à saída reparo pelo canto do olho em mais um set que se
aproximava no horizonte. Não resisti a remar de volta para fora, para lá
da zona de arrebentação para apanhar a onda da despedida.
Foi-me difícil deixar esse mar que tanto me tinha dado e
que mesmo naquela idade já conhecia tão bem, como se conhece um velho
amigo. Um amigo que me diz sempre a verdade, que me recebe como venho e
me devolve sempre ao mundo como sou. Por essa altura já tinha
compreendido que apenas começamos a amá-lo verdadeiramente quando com o
tempo, aprendemos a ouvir o que ele tem para nos dizer
Lembro-me de fechar os olhos por uns instantes enquanto
aguardava pela última onda e de sentir na cara o calor dos últimos raios
de Sol. E de desfrutar o silencio nessa última surfada, apenas cortado
pelo som das ondas que rolavam ao longe. A diferença na quantidade e no
ângulo da luz altera-nos a percepção das distâncias e quando a última
onda do dia chegou, parecia um monstro em forma de uma escura parede
líquida que se abeirou de mim para com ela desabar no vazio, num grito
de guerra de quem se força a não olhar para trás. Deixei-me deslizar por
aquele enorme vulto num gesto quase submisso e lavado em lágrimas de
água salgada. Perto da praia, e já encostado à parede líquida, notei na
transparência da lente que me envolvia e que a luz do sol pintava de
dourado em contra-luz. Estava sereno e estava decidido. Não ia olhar
para trás.
As despedidas são quase sempre solitárias. E a minha foi
certamente a mais solitária de todas as que fiz na minha vida. Estava-me
a despedir interiormente da minha vida em Lisboa, dos meus pais e de
ti. Sabia que tão cedo não iria voltar a Portugal. E enquanto subia a
praia em direcção ao carro, voltei as costas a todo aquele cenário,
despedindo-me também de tudo o que ia deixar para trás, como se se
tratasse de uma pessoa. Sentia-me pincelado por dentro em tons de
ressentimento, saudade e carinho. E estava com a mais profunda certeza
de que aquele amor sem futuro que tanto me doía era em mim tão real,
como aquela última onda que desci a todo o gás, mas que ficou para trás,
desaparecida contra a areia. Sem qualquer outro rasto do que aquele que
ficou na minha memória.
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