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sexta-feira, 5 de agosto de 2011

6. Resolução

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Há muito que aprendi que a concordância de sentimentos tem tanto a ver com a mútua simpatia entre cromossomas, a frequência de onda no espírito e o rolar da pele sobre a pele, como com sentido de oportunidade. E tenho que reconhecer que as nossas vidas tinham começado já a tomar rumos diferentes, mesmo antes de nos termos conhecido. Tinha acabado o curso, estava num limbo de soluções, à procura do meu primeiro emprego e doido para ser atirado aos leões. Precisava de expulsar este peso que carregava por dentro e que me pesava como uma âncora, impedindo-me de seguir em frente. Não tinha nada a perder. Por isso, quando o meu tio Vasco, que vivia em Buenos Aires, me desafiou para ir até lá passar uma temporada, aceitei logo sem pestanejar. Sinceramente, naquele momento mudar de hemisfério parecia-me suficientemente drástico. Era exactamente o que eu estava a precisar para aguentar airosamente aquele violento revés do meu coração de iniciado, e curar-me do estado deplorável em que me encontrava. Não sabia o que me ia acontecer e na pior das hipóteses ficaria por lá apenas umas semanas. Tinha o tio para tratar de mim e mostrar-me os cantos à cidade. Com sorte, qualquer coisa haveria de aparecer, ali ou noutro lugar. E durante as semanas que seguiram, deixei aquela ideia crescer dentro de mim, ganhando força a cada minuto que passava.
De facto, as pepitas que trazemos no bolso não provam nada. Dão-nos esperança, mas são só o que são. Umas pedrinhas preciosas que trazemos no bolso que não provam a existência da mina que juramos ter descoberto, e que não têm mais nenhuma utilidade do que nos encher de esperança. Mas a esperança Inês, essa sim, é preciosa, e muito. Quem já teve a sua quota-parte de perda sabe bem a importância de manter viva uma boa dose de esperança e de não nos deixarmos desanimar de cada vez que somos obrigados a reconhecer a perda, a tirar as pepitas do bolso e a guardá-las na prateleira.
 Acho que o tempo nos vai ensinando o que é verdadeiramente importante. Sobretudo ensina-nos que não nos podemos dar ao luxo de ficar com medo de nos deixarmos guiar pelas pepitas que trazemos no bolso. Mas quando já sofremos muito, além de sabermos que aguentamos muita coisa, sabemos também que para sermos felizes não temos que passar por tudo. Nesses momentos, basta-nos olhar em frente com a certeza de que conseguimos chegar às coisas boas e simples da vida com facilidade. E voltar a trabalhar para que o nosso dia-a-dia se volte a transformar numa fábrica eficiente de outros momentos igualmente geniais.
 Quando as saudades tornam-se difíceis demais para suportar, não nos resta outra alternativa do que aprender a olhar o futuro de frente, com a mais genuína saudade daquilo que no nosso íntimo sabemos que nos espera. De tudo o que havemos de construir novamente, nem que tenhamos que morrer a tentar. E naqueles dias, enquanto tentava arquivar aquelas pesadas pepitas douradas que trazia comigo, só conseguia pensar no vazio que ficava no seu lugar. No vazio que permanecia em lugar dessas memórias que pouco tempo antes serviam para me guiar na esteira do nosso amor, como promessas de um futuro em que finalmente tudo encaixava na perfeição. E que agora não passavam de pedras que me pesavam no bolso, enchendo-me de desânimo e atrasando-me a caminhada. Era altura de levantar a cabeça e pensar que tudo o que nos aconteceu, de bom ou de sofrido, estava agora a pedir-me que preenchesse esse espaço vazio. E de facto, esta oportunidade de vir para Buenos Aires não podia ter aparecido em melhor altura.
 Assim, logo depois do Natal, poucos dias depois de saber que te irias casar, já estava totalmente decidido em apanhar o primeiro avião para bem longe daí.
Na minha última tarde em Lisboa, só precisava de me encontrar com o mar e de me despedir, naquela que acabou por ser uma das minhas últimas sessões de surf em Portugal. As condições estavam óptimas e mesmo no final, enquanto esperava mais uma para sair, assisti a um pôr-do-sol memorável. Estava já sozinho, e os poucos que partilharam comigo aquelas ondas já tinham saído da água. Via apenas contornos, e tudo pintado a duas cores: o preto e o dourado. Na superfície da água, os reflexos preto e dourados contrastavam com o mar ao longe quase negro, o prenúncio da noite que se avizinhava. Lembro-me como se fosse ontem que as ondas nesse dia estavam de tal maneira perfeitas que não conseguia sair da água e acabei por ser expulso pela falta de luz. Naquele momento o cenário parecia-me parte de um rito religioso de passagem ao lado de lá da dor que eu imaginava possível. Apanhei uma última onda mas à saída reparo pelo canto do olho em mais um set que se aproximava no horizonte. Não resisti a remar de volta para fora, para lá da zona de arrebentação para apanhar a onda da despedida.
Foi-me difícil deixar esse mar que tanto me tinha dado e que mesmo naquela idade já conhecia tão bem, como se conhece um velho amigo. Um amigo que me diz sempre a verdade, que me recebe como venho e me devolve sempre ao mundo como sou. Por essa altura já tinha compreendido que apenas começamos a amá-lo verdadeiramente quando com o tempo, aprendemos a ouvir o que ele tem para nos dizer
Lembro-me de fechar os olhos por uns instantes enquanto aguardava pela última onda e de sentir na cara o calor dos últimos raios de Sol. E de desfrutar o silencio nessa última surfada, apenas cortado pelo som das ondas que rolavam ao longe. A diferença na quantidade e no ângulo da luz altera-nos a percepção das distâncias e quando a última onda do dia chegou, parecia um monstro em forma de uma escura parede líquida que se abeirou de mim para com ela desabar no vazio, num grito de guerra de quem se força a não olhar para trás. Deixei-me deslizar por aquele enorme vulto num gesto quase submisso e lavado em lágrimas de água salgada. Perto da praia, e já encostado à parede líquida, notei na transparência da lente que me envolvia e que a luz do sol pintava de dourado em contra-luz. Estava sereno e estava decidido. Não ia olhar para trás.
As despedidas são quase sempre solitárias. E a minha foi certamente a mais solitária de todas as que fiz na minha vida. Estava-me a despedir interiormente da minha vida em Lisboa, dos meus pais e de ti. Sabia que tão cedo não iria voltar a Portugal. E enquanto subia a praia em direcção ao carro, voltei as costas a todo aquele cenário, despedindo-me também de tudo o que ia deixar para trás, como se se tratasse de uma pessoa. Sentia-me pincelado por dentro em tons de ressentimento, saudade e carinho. E estava com a mais profunda certeza de que aquele amor sem futuro que tanto me doía era em mim tão real, como aquela última onda que desci a todo o gás, mas que ficou para trás, desaparecida contra a areia. Sem qualquer outro rasto do que aquele que ficou na minha memória.

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