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sexta-feira, 5 de agosto de 2011

8. A chegada



Foi num dia ensolarado, mesmo no pino do verão argentino, que cheguei a Buenos Aires. No aeroporto internacional de Ezeiza esperava-me o tio Vasco, essa figura quase lendária do meu imaginário. Era um homem de cabelo grisalho, que apesar dos seus cinquenta e poucos anos, era encorpado, alto e bem-parecido. Como era de esperar, fui encontrá-lo mesmo à porta das chegadas do terminal A com a sua exemplar pose de príncipe, impecavelmente trajado com o seu fato beije, camisa branca sem gravata, lenço de seda branco, paez e panamá. Já não o via desde os meus tempos de criança e que saudades eu tinha dele. Lembro me de passar toda a infância e adolescência a ouvir histórias daquele irmão da minha mãe que aos vinte e um anos de idade tinha sido expulso do país pelo próprio pai.
Consta que era conhecido por toda a Lisboa não só pelo seu aspecto de estrela de cinema que deixava todos em alvoroço, mas também pelo seu desinteresse por tudo o que considerava ser excessivamente sério, pela sua imprevisibilidade e gosto em chocar os outros que roçava a extravagância, mas também pela sua fome de viver, que o levava a embarcar ainda adolescente em viagens que ficavam conhecidas pelas aventuras mais inacreditáveis, seja pela Galiza com os amigos, na feira da Golegã ou nas surf trips que já na altura fazia com frequência do Minho a Tavira, atascando na areia incontáveis vezes o seu Fiat 127 carregado de pranchas e a que os seus amigos carinhosamente alcunharam de tractor.
As histórias do tio Vasco eram um dos light motifs mais correntes de conversa entre a sociedade lisboeta de todas as idades, variando as opiniões consoante as idades. Para os mais novos era visto como um herói, enquanto que para a geração dos pais era tido como um caso perdido, um mais que provável futuro drogado ou caso de polícia. Era de facto um tipo muito especial: passava a vida nas festas mas acordava sempre cedo, todas as manhãs para um passeio, geralmente na Baixa. Ocasionalmente corriam aqui e ali histórias em cenas suas de pancadaria na noite, mas na verdade todos em Lisboa sabiam onde o encontrar. Passava muitas manhãs na pastelaria Bernard, mesmo ali na Rua Garrett, ora a ler os jornais do dia, ora devorando os existencialistas Simone de Beauvoir, Nietsche e Jean-Paul Sartre ou as obras de ficção de Isaac Asimov e Arthur C. Clarke, quando não estava animadamente a pôr a sua correspondência pessoal em dia, ali mesmo na esplanada. Fumava compulsivamente despachando uns dois ou três maços de tabaco por dia e quando não estava a viajar dormia sempre a sua siesta. Dizia-se, com mais maldade do que outra coisa que todos os meses tinha uma namorada nova. À sua volta persistia um tumulto constante, muitas vezes empolado pela imaginação alheia, mas com o passar do tempo foram-se inevitavelmente somando novas histórias de copos, amores e zaragatas. A sua relação com o meu avô era tempestuosa porque se recusava a trabalhar no negócio de família ou a terminar o curso de Economia, mas gostavam muito um do outro e sempre tiveram entre si uma relação de respeito. Curiosamente entendiam-se bem e apesar de o filho não preencher as expectativas do pai, nenhum dos dois via o outro como uma desilusão.
Até que um dia por motivos que nunca foram completamente esclarecidos, o meu avô João, exasperado e sem conseguir dominar o génio e a rebeldia do filho, meteu-o num avião para Cabo Verde só com um bilhete de ida. O destino era cidade do Mindelo, na ilha de S. Vicente. Quem o esperava era o empresário local, Senhor Manuel José, que tinha uma dívida antiga ainda por saldar para com o meu avô. O tio Vasco foi bem recebido e deram-lhe um trabalho na empresa Manuel José & Filhos, Lda. que se dedicava ao trading entre ilhas e internacional. A empresa comprava e vendia contentores com todo o tipo de bens, dirigidos a mercados espalhados pelo mundo inteiro, especialmente aqueles onde se encontravam fixadas comunidades de emigrantes cabo-verdianos e portugueses. Desesperançado e contrariado, o tio lá aceitou o desafio. Como de início não conhecia ninguém, refugiou-se no trabalho abraçando com abandono e dedicação a posição que lhe foi oferecida, tendo-se tornado num dos melhores traders da companhia.
Ao fim do segundo ano já conhecia a ilha inteira e todos o conheciam. Não era um meio muito grande, mas seja como fosse, o tio Vasco nunca passava despercebido. Tinha um carisma muito particular, uma boa memória que aliada a uma mistura de rapidez de raciocínio com atrevimento, o permitiam falar sobre quase tudo, fosse com quem fosse. Também tinha as suas namoradas, mas parecia que o ambiente na ilha lhe estava a fazer bem. A vida social era infinitamente mais sossegada do que aquela a que estava habituado em Lisboa e, a par do surf, que com excepção do seu amigo fotógrafo Toninho — mais tarde dono da única loja de fotografias da ilha de S. Vicente — mais ninguém praticava, começou a interessar-se pela pintura. Dizia que em S. Vicente havia tempo para tudo e angustiava-lhe a falta de cor daquela paisagem árida da ilha, que lhe fazia falta o verde e o rumor da vida, aquele barulho de fundo quase imperceptível da natureza que no continente se ouvia e que a maior parte de nós confunde com o próprio silêncio. O tio Vasco até hoje diz muitas vezes que foram duas as coisas que na vida lhe ensinaram o que era o silêncio: Cabo Verde e as mulheres.
Mas todo aquele silêncio das ilhas soava-lhe mais a ausência de vida e despertava-lhe uma solidão quase sufocante. Tinha muitas saudades da sua mãe e do seu pai, que o tinha aturado mais do que ele teria sido capaz, mesmo num filho. E por mais que tivesse saudades de Lisboa e dos amigos que ficaram para trás, sabia que tanto o Mindelo como Lisboa eram pequenas demais para ele. Cabo Verde acabou por ser um importante ponto de passagem para um homem que naquela altura precisava sobretudo de reunir as tropas do seu exército interior e de escolher o próximo destino pelo seu próprio pé. Não se pode dizer que tenha feito fortuna em Cabo Verde, mas a vida no Mindelo era simples e frugal e o seu contributo na empresa de trading do Senhor Manuel José rendeu-lhe uma poupança suficiente para, passados dois anos e meio, rumar para o seu próximo destino: Buenos Aires, a Paris da América do Sul.
Ali chegado, foi trabalhar numa das empresas correspondentes da Manuel José & Filhos, Lda. onde como em Cabo Verde veio a ter sucesso. Fixou-se no bairro da Recoleta e frequentava os bares, milongueras e tanguerias da moda onde se ouvia e dançava o tango e fez muitos amigos entre a classe alta portenha. Com o seu aspecto fidalgo e semblante ligeiramente altaneiro não passava despercebido em lado nenhum, nem mesmo em Buenos Aires. Até que um dia, apresentada a oportunidade, juntou-se a mais três ou quatro amigos endinheirados e juntos compraram um dos maiores e mais reputados cafés da cidade: o centenário La Biela.
Depois de um longo e afectuoso abraço que imediatamente fez desaparecer os mais de dez anos que passaram desde a última vez que nos vimos, entrámos no seu antigo Wolkswagen Jetta castanho claro e seguimos juntos, cidade adentro.

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