Foi num dia ensolarado, mesmo
no pino do verão argentino, que cheguei a Buenos Aires. No aeroporto
internacional de Ezeiza esperava-me o tio Vasco, essa figura quase lendária do
meu imaginário. Era um homem de cabelo grisalho, que apesar dos seus cinquenta
e poucos anos, era encorpado, alto e bem-parecido. Como era de esperar, fui
encontrá-lo mesmo à porta das chegadas do terminal A com a sua exemplar pose de
príncipe, impecavelmente trajado com o seu fato beije, camisa branca sem
gravata, lenço de seda branco, paez e panamá. Já não o via desde os meus tempos
de criança e que saudades eu tinha dele. Lembro me de passar toda a infância e
adolescência a ouvir histórias daquele irmão da minha mãe que aos vinte e um
anos de idade tinha sido expulso do país pelo próprio pai.
Consta que era conhecido por
toda a Lisboa não só pelo seu aspecto de estrela de cinema que deixava todos em
alvoroço, mas também pelo seu desinteresse por tudo o que considerava ser
excessivamente sério, pela sua imprevisibilidade e gosto em chocar os outros
que roçava a extravagância, mas também pela sua fome de viver, que o levava a
embarcar ainda adolescente em viagens que ficavam conhecidas pelas aventuras
mais inacreditáveis, seja pela Galiza com os amigos, na feira da Golegã ou nas surf trips que já na altura fazia com
frequência do Minho a Tavira, atascando na areia incontáveis vezes o seu Fiat 127 carregado de pranchas e a que
os seus amigos carinhosamente alcunharam de tractor.
As histórias do tio Vasco eram
um dos light motifs mais correntes de
conversa entre a sociedade lisboeta de todas as idades, variando as opiniões
consoante as idades. Para os mais novos era visto como um herói, enquanto que
para a geração dos pais era tido como um caso perdido, um mais que provável
futuro drogado ou caso de polícia. Era de facto um tipo muito especial: passava
a vida nas festas mas acordava sempre cedo, todas as manhãs para um passeio,
geralmente na Baixa. Ocasionalmente corriam aqui e ali histórias em cenas suas
de pancadaria na noite, mas na verdade todos em Lisboa sabiam onde o encontrar.
Passava muitas manhãs na pastelaria Bernard, mesmo ali na Rua Garrett, ora a
ler os jornais do dia, ora devorando os existencialistas Simone de Beauvoir,
Nietsche e Jean-Paul Sartre ou as obras de ficção de Isaac Asimov e Arthur C.
Clarke, quando não estava animadamente a pôr a sua correspondência pessoal em
dia, ali mesmo na esplanada. Fumava compulsivamente despachando uns dois ou
três maços de tabaco por dia e quando não estava a viajar dormia sempre a sua siesta. Dizia-se, com mais maldade do
que outra coisa que todos os meses tinha uma namorada nova. À sua volta
persistia um tumulto constante, muitas vezes empolado pela imaginação alheia,
mas com o passar do tempo foram-se inevitavelmente somando novas histórias de
copos, amores e zaragatas. A sua relação com o meu avô era tempestuosa porque
se recusava a trabalhar no negócio de família ou a terminar o curso de Economia,
mas gostavam muito um do outro e sempre tiveram entre si uma relação de
respeito. Curiosamente entendiam-se bem e apesar de o filho não preencher as
expectativas do pai, nenhum dos dois via o outro como uma desilusão.
Até que um dia por motivos que
nunca foram completamente esclarecidos, o meu avô João, exasperado e sem
conseguir dominar o génio e a rebeldia do filho, meteu-o num avião para Cabo
Verde só com um bilhete de ida. O destino era cidade do Mindelo, na ilha de S.
Vicente. Quem o esperava era o empresário local, Senhor Manuel José, que tinha
uma dívida antiga ainda por saldar para com o meu avô. O tio Vasco foi bem
recebido e deram-lhe um trabalho na empresa Manuel José & Filhos, Lda. que
se dedicava ao trading entre ilhas e
internacional. A empresa comprava e vendia contentores com todo o tipo de bens,
dirigidos a mercados espalhados pelo mundo inteiro, especialmente aqueles onde
se encontravam fixadas comunidades de emigrantes cabo-verdianos e portugueses.
Desesperançado e contrariado, o tio lá aceitou o desafio. Como de início não
conhecia ninguém, refugiou-se no trabalho abraçando com abandono e dedicação a
posição que lhe foi oferecida, tendo-se tornado num dos melhores traders da companhia.
Ao fim do segundo ano já
conhecia a ilha inteira e todos o conheciam. Não era um meio muito grande, mas
seja como fosse, o tio Vasco nunca passava despercebido. Tinha um carisma muito
particular, uma boa memória que aliada a uma mistura de rapidez de raciocínio
com atrevimento, o permitiam falar sobre quase tudo, fosse com quem fosse.
Também tinha as suas namoradas, mas parecia que o ambiente na ilha lhe estava a
fazer bem. A vida social era infinitamente mais sossegada do que aquela a que
estava habituado em Lisboa e, a par do surf, que com excepção do seu amigo
fotógrafo Toninho — mais tarde dono da única loja de fotografias da ilha de S.
Vicente — mais ninguém praticava, começou a interessar-se pela pintura. Dizia
que em S. Vicente
havia tempo para tudo e angustiava-lhe a falta de cor daquela paisagem árida da
ilha, que lhe fazia falta o verde e o rumor da vida, aquele barulho de fundo
quase imperceptível da natureza que no continente se ouvia e que a maior parte
de nós confunde com o próprio silêncio. O tio Vasco até hoje diz muitas vezes
que foram duas as coisas que na vida lhe ensinaram o que era o silêncio: Cabo
Verde e as mulheres.
Mas
todo aquele silêncio das ilhas soava-lhe mais a ausência de vida e
despertava-lhe uma solidão quase sufocante. Tinha muitas saudades da sua mãe e
do seu pai, que o tinha aturado mais do que ele teria sido capaz, mesmo num
filho. E por mais que tivesse saudades de Lisboa e dos amigos que ficaram para
trás, sabia que tanto o Mindelo como Lisboa eram pequenas demais para ele. Cabo
Verde acabou por ser um importante ponto de passagem para um homem que naquela
altura precisava sobretudo de reunir as tropas do seu exército interior e de
escolher o próximo destino pelo seu próprio pé. Não se pode dizer que tenha
feito fortuna em Cabo Verde,
mas a vida no Mindelo era simples e frugal e o seu contributo na empresa de trading do Senhor Manuel José rendeu-lhe
uma poupança suficiente para, passados dois anos e meio, rumar para o seu
próximo destino: Buenos Aires, a Paris da América do Sul.
Ali
chegado, foi trabalhar numa das empresas correspondentes da Manuel José &
Filhos, Lda. onde como em
Cabo Verde veio a ter sucesso. Fixou-se no bairro da Recoleta
e frequentava os bares, milongueras e
tanguerias da moda onde se ouvia e
dançava o tango e fez muitos amigos entre a classe alta portenha. Com o seu aspecto fidalgo e semblante ligeiramente
altaneiro não passava despercebido em lado nenhum, nem mesmo em Buenos Aires. Até
que um dia, apresentada a oportunidade, juntou-se a mais três ou quatro amigos
endinheirados e juntos compraram um dos maiores e mais reputados cafés da
cidade: o centenário La Biela.
Depois
de um longo e afectuoso abraço que imediatamente fez desaparecer os mais de dez
anos que passaram desde a última vez que nos vimos, entrámos no seu antigo
Wolkswagen Jetta castanho claro e seguimos juntos, cidade adentro.
Sem comentários:
Enviar um comentário