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terça-feira, 31 de maio de 2011

O Elefante Escondido

(cardiologia para iniciados) 

"Run fast for your mother, run fast for your father,
run for your children and for your sisters and brothers,
leave all your loving, your loving behind
you cant carry it with you if you want to survive."
― Florence + The Machine - Dog Days are Over

A última vez que fiz um electrocardiograma fiquei a saber que tenho um coração preguiçoso. Não que haja aqui alguma metáfora, mas ele literalmente bate menos vezes do que seria de esperar na opinião dos especialistas. A primeira vez que ouvi isto fiquei atordoado com a ideia que com tanta preguiça ele parasse, ao que me explicaram com um sorriso paciente que os corações lentos são normalmente os corações dos atletas, que batem pouco para economizar e para terem a folga necessária para estarem preparados para as situações de esforço em que são chamados a dar tudo de si.

Dessa conversa percebi que na realidade o meu coração não é preguiçoso, tem é a vida mimada de um cavalo de corrida ou de um atleta de alta competição, uma vez que para ele o descanso faz parte da preparação para o fim a que se destina.

Fui para casa intrigado com esta imagem, não só porque nunca me tinha visto dessa maneira, mas também porque nunca pensei que o meu coração pudesse ser tão forte que aguentasse assim com tanta carga. Não estou nada a ver o meu coração como o daqueles corredores da maratona, que batem durante dezenas e dezenas de quilómetros de passadas desvairadas, quando o meu, tantas vezes por dia parece que vai parar com o sobressalto de quando me bate aquela saudade.

Naturalmente que tudo isto deixou-me altamente desconfiado, e durante os meses seguintes pedi várias opiniões a outros cardiologistas que me deixaram cada vez mais alarmado. De facto, nada disto fazia sentido. É que apesar de cada um ter a sua teoria quanto ao meu coração, todos acabavam por concluir que eu tinha um coração forte e saudável quando na verdade eu não me andava a sentir nada bem com ele. O problema era simples: parecia que de ano para ano o meu coração ia ficando mais lento, pesado e cheio, parecia mais fraco, apertado e cansado, em vez de − como seria de esperar − ir ficando mais folgado com o crescimento da cavidade toráxica, que com os anos deveria tornar-se cada vez mais espaçosa e confortável.

 Até que, em desespero de causa falei com um amigo – que não era cardiologista mas era um reputado especialista em assuntos do coração – que com muita graça me explicou:

− Sabes Zé? Não tem nada a ver com a velocidade a que ele anda, até porque cada um tem a sua velocidade e a pressa é inimiga do óptimo. A maior parte das pessoas nasce com uma cabeça e com o coração grandes. São duas partes do corpo essenciais para o crescimento e é por isso que se desenvolvem mais cedo. E à medida que vamos crescendo vão assumindo uma melhor proporção em relação ao resto do corpo. Em alguns casos até o coração dos adultos chega a ser pequenino como uma borboleta, esvoaçando animadamente dentro do peito na maior das liberdades, na maior das despreocupações, sem força, sem direcção e sem importância nenhuma, como se tratasse de uma simples distracção. O problema aqui é que é que tu tens um coração de elefante!

− Elefante mas tu ensandeceste pá?? Não se pode ter uma conversa séria contigo? Estou a falar a sério! Não há nada que eu possa tomar? Se não me podes ajudar diz porque eu não estou com paciência p brincadeiras… – respondi eu já sem paciência nenhuma, de palmas à mostra e sobrancelhas levantadas.

− Eu explico-te meu caro… é simples. – disse-me ele com um ar calmo e confiante ao ponto de irritar – aposto contigo que quando Deus estava a fazer legos na sua mesa das brincadeiras e com pressa para ir lanchar deve ter pegado no primeiro coração que encontrou no meio da confusão de pecinhas e encaixou-to em ti, não pode haver outra explicação. Acho que devias fazer um TAC para ir ver isso porque realmente deves ter um coração de elefante. Digo isto porque o teu pelos vistos tem crescido com o resto do corpo em vez de estabilizar. Como tem crescido, tens-te habituado a guardar tudo nessa tua arrecadação dos sentimentos. E é por isso que te sentes a carregar cada vez um peso maior. A maior parte das pessoas habitua se desde cedo ao tamanho do seu coração. E como o coração das pessoas normalmente não cresce, habituam-se a uma contabilidade que os obriga a tirar sempre qualquer coisa para criar o espaço necessário para que qualquer coisa nova entre – é o normal entre nós humanos.

E continuou:

− O coração é uma parte de nós que também pensa e também é grande e é independente, como um elefante.E por mais que racionalizemos as coisas todas que nos acontecem é de dentro do peito que vem toda a força da nossa intenção e pensando bem, mesmo que venhas a descobrir que não tens um coração de elefante, o teu coração é o elefante que não podes ignorar. E daí se tens um coração enorme? Como o que o mundo merece de nós é o melhor que podemos ser, que tal começar por ser amigo do elefante? Que tal cuidá-lo e mostrá-lo apenas a quem o merece? Que tal deitar fora tudo o que já não interessa e deixar de carregar desnecessariamente o teu elefante às costas?

Naquele dia fui para casa meio envergonhado a pensar naquelas palavras, cómicas para quem as disse e trágicas para quem as ouviu, e de repente tudo passou a fazer outro sentido. De uma maneira simpática este meu amigo desviou-me o olhar para uma conversa muito mais importante e que eu sistematicamente andava a negar ou a ignorar. Enquanto que a cabeça é o guia, o planeador racional que vê o que está para a frente e se auto determina perante as circunstâncias, o coração é a besta de carga sobre a qual estamos sentados e temos obrigação de dominar. Se não nos conseguirmos impor através da esperteza ou da persuasão, vamos acabar por ir atrás e ser engolidos como tudo o resto que se atravessa à sua frente. Há que saber ser o guia em vez de nos tornarmos na vítima do nosso elefante.

Realmente, saber manter a calma e deitar fora, abrir mão do que não interessa, são essenciais na contabilidade amorosa que existe entre o guia e o elefante. Porque há sempre trabalho a fazer. Há sempre quem precise de nós. Há sempre uma altura certa para partir a arrepiar caminho. Mesmo que ainda não se saiba bem para onde.

JAO

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