Mensagens populares

acompanhe no Facebook

terça-feira, 31 de maio de 2011

O Jogo das Cadeiras

"and those who were seen dancing were thought to be insane
by those who could not hear the music." 
― Friedrich Nietzsche

I – Foi numa conversa à beira mar de um dia de Sol, com um amigo que já não via há quase uma vida inteira, que ao caso veio um assunto muito estranho a estas conversas de algibeira e areia molhada. Com o mar a ir e vir aos nossos pés e encarados de frente pelo horizonte, ouço-o dizer-me que finalmente descobriu a importância da serenidade. Essa coisa sem cheiro, sem cor e sem sabor, tão pouco valorizada e que aparentemente nos serve de pouco mais do que nos encher de paciência para assistir de ar confiante ao desenrolar do que nos espera.

Realmente, pensei eu, a serenidade além de sensaborona, parece ser de muito pouca utilidade, porque equivale na vida interior a esperar que tudo se resolva sozinho. Além disso parece que a serenidade é um estado que nos acontece e nos envolve a partir da altura em que com a idade nos tornamos mais tranquilos e sem a necessidade de perseguirmos um certo lugar interior, pela simples razão de que entretanto já nos conhecemos como às palmas das nossas mãos. 

II – Se pensarmos bem, da mesma maneira que há tantas pessoas que acham e dizem que falam Castelhano mas em Espanha acabariam por usar o Inglês, todos achamos que percebemos perfeitamente a linguagem do amor, desde o momento em que ela se nos apresenta nos sentidos. Somos todos uns grandes convencidos que acham que sabem falar amor e de que somos os seus mais dedicados discípulos. E é precisamente por causa disso que há tanta coisa que nos parece tão óbvia, como quem é certo e quem é errado para nós e sobre a direcção a seguir, como se realmente tivéssemos um GPS incorporado no coração.

Só que esta linguagem não é apreendida pelos sentidos pela simples razão de que não é processada pelo nosso cérebro. A maior parte de nós passa a vida inteira sem perceber que, na verdade, nós não temos alma, nós somos alma. Temos é um corpo. E ver-nos de outra maneira é reduzir-nos a uma insignificância que não temos. É uma miopia que faz com que, apesar de tudo fazermos para seguir na direcção em que achamos que o amor nos aponta, sempre que achamos que o encontrámos ou que sabemos para onde vai, acabamos muitas vezes por descobrir que tudo não passou de simples e auto impostas ilusões. E como somos impacientes, agimos como crianças apressadas e totalmente convencidas da nossa fluência nessa linguagem extra-terrena, e acabamos pegando nas meias palavras que o amor sussurra nos nossos ouvidos e adicionamos aos murmúrios mal entendidos dessa linguagem, as circunstâncias, as oportunidades, o medo, os aspectos qualitativos e claro, os quantitativos. E assim acabamos por achar que sabemos lindamente o que é que a vida tem reservado para nós.

Da mesma maneira que para ganhar a lotaria não basta rezar a Nossa Senhora da Esperança – é também preciso comprar o talão –, acabamos por fazer de tudo para que a realidade que queremos alcançar à viva força se ajuste àquilo que achamos o amor pretende de nós. É nesse processo em que, sem nos darmos conta, acabamos por perder toda a serenidade, em que acabamos por estragar tudo o que recebemos e tentamos aprisionar ou condicionar os outros, desrespeitando espaços, levantando muros e construindo toda uma rede de expectativas que mais não são do de uma antecipação do futuro que julgamos nos pertencer.

Mas é também aí que falhamos ao não entender que todo o amor que precisamos está mesmo à mão de semear, e que todo o sofrimento, tudo o que para dentro choramos não passa do resultado dessa tara manienta que nos faz a toda a hora julgar com toda a certeza sabermos qual é a vontade de Deus a nosso respeito. Só que o amor não nos anda a dar indicações como um GPS em finlandês. O amor é uma criança surda-muda que está aqui à nossa espera e a dar-nos a mão, paciente e sempre com os olhos postos em nós. 

III – Sorte a nossa de que, uma das características do sofrimento que criamos com os nossos enganos e convencimentos, é que passa com o tempo. E se sofrermos mais é porque não aprendemos a lição e encontrámos novas formas de nos enganarmos ou novas forças para nos punirmos.

E depois do tempo e da memória e das cicatrizes que nos ficam, o que nos resta muitas vezes é apenas aquela simples noção de que, contrariamente ao que sentíamos quando achávamos que devíamos fazer qualquer coisa para que a realidade e o amor se alinhassem como dois astros eclipsados apenas pela força da nossa vontade, o que o amor afinal pressupõe é liberdade. A nossa e a dos outros. A liberdade de partir, liberdade de ficar, e a liberdade de deixar ir.

Mas a vida surpreende e acaba por nos mostrar que, a menos que nos coloquemos no seu caminho, o amor encarrega-se mesmo de colocar cada coisa no seu devido lugar. E que, apesar de constantemente O atrapalharmos porque julgamos saber o que é que Ele tem reservado para nós, com o tempo, amor acabará por se tornar uma presença visível nas nossas vidas. E acabará por se instalar e se impor fatalmente como uma boa tempestade, fluindo inexoravelmente de dentro para fora como um enorme cargueiro a sair largado do estuário das nossas vidas para o alto mar. Quando esse momento chegar, vai ser impossível não saber reconhecer a sua presença porque Ele de facto, “tudo tolera, tudo crê, tudo espera e tudo suporta” (S. João 1, Cor. 13).

E a serenidade, essa, mostra-nos afinal que o segredo da liberdade não tem nada a ver nem com esperar que tudo nos surja facilmente nem com vinganças ou com ridículos ajustes de contas em que nos cobramos mutuamente o que os outros muitas vezes não têm ou não entendem e que só pode vir do seu coração, naturalmente. Mas tem a ver, isso sim, com a capacidade para serenamente abrir mão e deixarmos que tudo caia no seu lugar, como num jogo das cadeiras em que, afinal, as cadeiras somos nós.

JAO


Quando chegou o dia de Pentecostes, todos os seguidores de Jesus estavam reunidos no mesmo lugar. De repente, veio do céu um barulho que parecia o de um vento soprando muito forte e esse barulho encheu toda a casa onde estavam sentados. Então todos viram umas coisas parecidas com chamas, que se espalharam como línguas de fogo; e cada pessoa foi tocada por uma dessas línguas. Todos ficaram cheios do Espírito Santo e começaram a falar em outras línguas, de acordo com o poder que o Espírito dava a cada pessoa.”
Actos 2, 1-4

Sem comentários:

Enviar um comentário