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terça-feira, 31 de maio de 2011

Em Contrapé

(da história do Velho Mineiro às nossas pinturas de criança)

Knowledge is learning something every day
Wisdom is letting go of something every day"
― Provérbio Zen 

I ― Todos vivemos num enorme e curioso dilema existencial, que apesar de ser evidente, é a maior parte das vezes óbvio demais para ser notado. Chega a ser engraçado, mas entre as nossas extremidades vivemos entre dois mundos completamente diferentes.

Com os pés andamos pelo tempo e o espaço, com a particularidade de que para irmos do ponto A para o ponto B, temos que pagar o tributo ao tempo e espaço que está entre os dois. Eu explico: para chegar ao ponto B temos que investir o número de passos necessários a lá chegar, e cada passo tem o seu tempo e a sua distância certa. Quanto a isso não há nada a fazer. Os nossos pés nunca estão em dois lugares ao mesmo tempo, e por isso, para passarmos de um sítio para o outro temos que percorrer o caminho que falta até lá chegar.

Por outro lado, ao contrário dos pés, a nossa extremidade oposta permite-nos estar em dois sítios ao mesmo tempo. E saltar de um tempo ou lugar para outro, sem termos de nos dar ao trabalho de percorrer o espaço que fica entre o ponto A e o ponto B.

Deve ser isso porque o nosso cérebro tem duas metades. Uma, para pensar e viajar no mar de sonhos e memórias, e outra metade para controlar o corpo e fazer a diplomacia necessária entre o corpo e o sonhador, entre os pés e o viajante. E assim, andamos repartidos, por um lado, entre viagens intermitentes no tempo, revisitando outros lugares num constante regresso ao passado, e por outro lado pela circunstância de termos os pés bem cravados no chão, com a sua tendência para nos fazer dançar e andar para a frente, insistindo em nos levar com eles, como se ansiassem pelo futuro ainda mais que nós.


II ― Mas viajar não tem mal nenhum, até porque de facto, há momentos inesquecíveis. Dias, horas ou minutos que ficaram para trás e agora estão arquivados na nossa prateleira das recordações perfeitas. Às vezes caímos no erro de acreditar que tudo o que nos resta, são de facto apenas aqueles minutos passados com a máxima atenção de quem conhece a brevidade dos momentos de felicidade. Lembro-me de lutar contra o sono de olhos abertos à força, sabendo que a qualquer momento tudo podia acabar. E de pensar que a melhor maneira de perpetuar tudo aquilo seria fixar muito bem todos os detalhes para dali levar uma memória o mais completa possível. E guardar na bagagem uma imagem bonita e vistosa, com cheiro, sabores e texturas para poder retornar, uma e outra vez, com a máxima devoção, como se de uma relíquia se tratasse. Fosse só assim em pensamentos, ou se possível até, de corpo e alma.

Agora, olhando para um desses momentos, apesar de as pedrinhas estarem ali todas no sítio certo, a temperatura perfeita e a companhia ideal, acho que o que verdadeiramente nos encanta sobre eles é o facto de nos dizerem qualquer coisa sobre nós, e sobretudo por nos passarem a indicar o caminho a seguir. Afinal, fomos nós que os escolhemos e construímos. São como pedras preciosas que trazemos no bolso, nos enchem o coração e que nos tornam insensíveis aos desaforos do mundo.


E muitas vezes ficamos como aquele velho prospector mineiro, descobridor de uma mina longínqua e desconhecida, que traz no bolso algumas pepitas de ouro, sujas e gastas pelo tempo, que nos servem para provar aos outros que as minas que encontrámos de facto existem. Mas que também usamos todas as manhãs, na solidão do nosso quarto, quando as tiramos do bolso e as olhamos para nos convencermos de que as minas são reais, e que afinal, a nossa descoberta não foi apenas um sonho. 

III― Até ao dia em que, pelas mais variadas razões, a vida apanha-nos em contrapé. E percebemos que temos que encher o saco da viola, pô-la às costas e pensar que afinal aquele concerto que estivemos a dar nunca aconteceu, e que aquelas palmas eram afinal os ramos das árvores a bater uns nos outros com a força do vento. E com algumas despedidas que sofremos, somos obrigados a abrir mão dos tesourinhos em que nos apoiámos para saber para onde estávamos a ir. Quando isso acontece tiramos essas velhas pepitas do bolso, e colocamo-las numa alta prateleira da galeria das memórias. Parece que a nossa alma não descansa enquanto não formos nós ― porque temos que ser nós a fazer o trabalho sujo para que a nossa alma descanse em paz ― a atribuir um lugar certo para esses pedaços que ficam à espera de ser arrumados.

Aí, é normal sentimo-nos traídos porque parece que afinal aqueles momentos mentiram-nos, aquelas pepitas de ouro não passavam afinal de umas pepitas quaisquer que trazíamos no bolso para nos convencermos de qualquer coisa que afinal não era. Que apenas serviam para nos prometermos a nós próprios qualquer coisa que sonhámos e em que acabámos por acreditar mas que afinal, não dependia só de nós.

Mas tudo passa, e a certa altura acabamos por dar connosco com a alma de joelhos, abraçados a essas memórias pelas quais lutámos sem sucesso, para descobrir que afinal, nem sempre conseguimos transformar memórias em sonhos. 

IV ― Às vezes andamos angustiados com uma sensação de que uma parte nossa nos foi subtraída, de que alguma coisa ou alguém levou para longe qualquer coisa que nos pertence. E aí parece que aqueles momentos perfeitos não foram tão perfeitos assim, pela simples razão de que afinal havia ali uma qualquer coisa que se veio a revelar não ser verdade. É uma íntima indignação que parece em tudo igual à sensação de perdermos alguém querido.

De facto, as pepitas que trazemos no bolso não provam nada. Dão-nos esperança, mas são só o que são. Umas pedrinhas preciosas que trazemos no bolso que não provam a existência da mina que juramos ter descoberto, e que não têm mais nenhuma utilidade do que nos encher de esperança.

Mas a esperança essa sim, é preciosa, e muito. Quem já teve a sua quota-parte de perda sabe bem a importância de manter uma boa dose de esperança e de não nos deixarmos desanimar cada vez que somos obrigados a reconhecer a perda, e a tirar as pepitas do bolso e guardá-las na prateleira. Acho que o tempo vai-nos ensinando o que é verdadeiramente importante, e sobretudo que não nos podemos dar ao luxo de ficar com medo de nos deixarmos guiar pelas pepitas que trazemos no bolso. Quando já sofremos muito sabemos que aguentamos muita coisa, mas também sabemos que para sermos felizes não temos que passar por tudo. Basta sabermos que conseguimos chegar às coisas boas e simples da vida com facilidade e voltar a trabalhar para que o dia-a-dia se transforme novamente numa fábrica eficiente de outros momentos igualmente geniais.

E ao reconhecermos a perda, enquanto arquivamos as pepitas douradas que andaram durante anos a pesar-nos no bolso, só conseguimos pensar no vazio que fica. E é nessa altura que temos que levantar a cabeça e pensar que tudo o que nos aconteceu, bom ou sofrido está agora a pedir-nos que preenchamos esse espaço vazio. Como disse o Dalai Lama “sometimes not getting what you want, may be a wonderful stroke of luck”. E de facto, tudo o que nos acontece restitui-nos o poder e a oportunidade para que preenchamos esse espaço da maneira que nós quisermos, como se fossemos uma criança entretida com grandes pinturas e de repente, sem qualquer aviso, nos tivessem entregado uma linda e maravilhosa folha em branco.

JAO

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