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segunda-feira, 5 de novembro de 2012

àquele lugar

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        Depois de escrever estas linhas, levantei os olhos em direção às crianças que ao fim da tarde ainda brincavam ali à frente, mais para junto da linha de água, e apercebi-me de que era hora de voltar para casa. Estava a ficar cansado e aproximava-se a hora de jantar. Levantei-me, arrumei os cadernos e os meus apontamentos numa pequena pilha que coloquei no meu saco de praia, e segui caminho pela areia molhada, em direção ao meu refúgio escondido no meio das dunas cobertas de pinheiros.
        Estas recordações deixam-me especialmente nostálgico, pelo desperdício de vida que representam. Pela perda de tempo e de talento. Pelo tanto que gostaríamos de ter feito ou poderíamos ter sido se ao menos não nos tivéssemos deixado consumir tão rápida e desnecessariamente. Se ao menos não nos tivéssemos permitido perder aqueles dias, como se eles ainda nos pudessem regressar. Mas reconheço que uma boa dose de perda é essencial para manter afastado o mal maior de nos arrependermos por não termos gozado as coisas na altura certa. Importante é que nos saibamos perdoar e ainda nos possamos recuperar. 

        Porque depois do dia em que de mudarmos o nosso destino, é sempre difícil não nos sentirmos perdidos, enquanto não encontrarmos novamente outro dos caminhos que nos levam àquele lugar, aonde os nossos sonhos ainda se poderão realizar.
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quarta-feira, 31 de outubro de 2012

coisas simples


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Saí de casa no dia seguinte da manhã, calcorreando os caminhos que atravessam o pinhal em direção ao centro da pequena e abastada cidade veraneante de Pinamar. Apesar de o verão do hemisfério Sul estar a chegar ao fim, aquela manhã prometia mais um dia quente e ensolarado. 
           Assim que cheguei ao centro da vila, voltei-me para a praia e entrei pela areia adentro, aproximando-me da espreguiçadeira de uma das sombras que ficam mesmo em frente a um dos restaurantes do areal. Pousei o saco que trazia comigo e ali fiquei parado durante uns momentos, observando a calma dança a que tudo parecia obedecer àquela hora da manhã. As aves madrugadoras que cruzavam a areia ainda lisa e intocada, o ar fresco que eu quase podia tocar, e o som das ondas que ao longe quebravam. O mar que, como eu, já tinha perdido muita da sua raiva, mas ainda tinha muito para dizer, com fortes chicotadas na areia a rasgarem o silêncio que dominava o areal.
           É engraçado como na praia de manhã encontramos sobretudo velhos e crianças pequenas, como se tanto uns como outros fossem os únicos a fazer questão de estar ali à hora certa. Pergunto-me se não serão os hábitos impuros da vida adulta que nos mancham a visão, de tal maneira que apenas deixemos de reparar nas coisas simples. Se assim for, faz todo sentido que a partir de certa idade sucumbamos a esses mesmos hábitos, ficando pelo caminho, ou que vencendo-os, retornemos à inocência para que afinal sempre estivemos programados. Fosse como fosse, era ali que eu queria ficar. 
           Depois, folheei brevemente os cadernos e os apontamentos que tinha deixado do dia anterior, e voltei a mergulhar na minha carta, relembrando o dia em que cheguei a este meu mundo novo.
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terça-feira, 11 de setembro de 2012

O TEU DEMÓNIO



Todos temos um demónio pessoal com quem ajustamos contas. Uma presença discreta, inseparável do nosso caminho, que está sempre ali, do nosso lado. E aquilo que varia mais de pessoa para pessoa é apenas a relação que cada um tem com o seu demónio. Uns têm demónios que falam em voz baixa e mal se fazem ouvir. Felizmente nestes casos, como basta o mais pequeno som para abafar a voz destes demónios, muitas vezes os seus donos não chegam sequer a perceber o que é que aqueles têm para lhes dizer, ficando a maior parte das vezes alheios à sua influência nefasta. O principal cuidado que os donos destes demónios têm de ter, é de evitar a todo o custo espaços vazios onde não entra ruído nenhum, porque são esses os lugares onde aquelas vozes são mais difíceis de ignorar.
 
Outros, possuem demónios faladores, que procuram atenção. Estas pessoas  tenderão a ser mais imunes e independentes à voz dos seus demónios, uma vez que por mais alto que aqueles falem, não se fazem facilmente respeitar pelos seus donos. Daí que geralmente estes demónios não passem para os seus donos de presenças menores, de restos evolutivos desnecessários apenas atendíveis em caso de descuido, desatenção ou quando, por qualquer razão, lhes é dada excessiva confiança. Para estas pessoas, os cuidados a ter são naturalmente, a necessidade de ser constante em não dar crédito às afirmações dos seus demónios, e de ter especial atenção em não partilhar com eles os seus momentos de fraqueza. Qualquer confusão quanto a este ponto poderá facilmente azo a sérios abusos, de evitar a todo o custo.

Há ainda casos de demónios fortes e carismáticos. São quase sempre dotados de uma clara e cristalina voz profética, que se sabem fazer ouvir não apenas pelos seus donos, mas também por aqueles que os rodeiam. Para estas pessoas, é muito difícil não acabar por estabelecer uma relação forte com o seu demónio interior. Porque ainda que lhes procurem escapar, é difícil não ouvir o seu tentador argumentário.

Eu fui uma destas pessoas. Durante muitos anos mantive uma relação muito próxima com o meu demónio, com quem falava de igual para igual. Somos muito diferentes, mas éramos amigos. Por vezes, desentendiamo-nos, mas fazíamos sempre tudo juntos, umas vezes por minha iniciativa, outras por iniciativa dele. Com o passar dos anos íamos ficando cada vez mais próximos, até que nos tornámos próximos demais para que a nossa amizade pudesse continuar como era dantes. Conheciamo-nos tão bem que julgávamos saber no que é que o outro estava a pensar, mesmo antes que o dissesse. Como a certa altura já não sabia bem se quem falava pela minha boca era eu ou o meu demónio, acabou por se instalar a desconfiança entre nós. E a desconfiança é o que destrói a maior parte das amizades. Por isso, um belo dia mandei-o calar-se, fechei-o no meu quarto e saí para a rua sozinho. Mais tarde nesse dia, quando voltei, descobri que já não estava. Não sei se ficou magoado comigo e partiu ou se adotou uma nova forma, e ainda esteja a pairar por aqui sem que eu tenha dado conta disso. Só sei que não sei. Porque sinceramente, nunca confiei muito nele.
JAO

sexta-feira, 27 de julho de 2012

timing

Muitas vezes, só estamos preparados para as coisas que queremos quando descobrimos que já não precisamos delas. E para amá-las, quando mesmo assim, ainda as quisermos.

segunda-feira, 23 de julho de 2012

primeiro dia em Pinamar



Depois de duas curtas paragens pelo caminho, cheguei a Pinamar ao início da tarde. É uma casa em madeira, toda pintada de um branco-azul e com um telhado escuro. Tem quatro quartos e um pé direito baixo, e fica aconchegada entre as dunas cravadas de pinheiros, mesmo em frente à praia. Está de tal maneira cercada pela vegetação e pelas dunas que passa facilmente despercebida para quem passeia do lado do mar.
Entrei pela porta da frente e atravessei-a por dentro. Passei pela sala e abri as portadas do alpendre coberto que fica virado para o areal, do lado de lá da casa. Depois de as abrir, fiquei algum tempo ali parado, a olhar através da sala e do alpendre para longe, sentindo o ar que entrou por ali adentro, como se naquela sala se tivesse instalado de repente um espírito cheirando a maresia. Já tinha saudades daquela praia voltada a Oriente, onde a areia fica mais branca ao entardecer, o mar praticamente da cor do céu e a espuma de um branco cor de neve. Deixei cair o saco de viagem no chão, pousei as chaves na mesinha que fica em frente do sofá, e fui imediatamente a um dos quartos que serve de escritório buscar uma mesa para escrever. Com a ansiedade que tinha para começar, afastei tudo de cima daquela pequena secretária: o forro em pele, o suporte com a minha coleção de canetas Montblanc, e a pilha de revistas de surf que sempre ali estiveram, desde o primeiro dia, enchendo um dos cantos numa espécie de grito de independência veraneante. A custo, lá consegui arrastar a mesa para a sala colocando-a mesmo por baixo do vão que separa a sala do alpendre entre as duas portadas recolhidas dos lados. Depois, tirei o maço de cadernos da mala, preparei dois litros de mazagran, pus a tocar um disco do Miles Davis, e ali fiquei, numa escrita febril e silenciosa, até ao anoitecer.

quinta-feira, 12 de julho de 2012

nocet empta dolore voluptas



A leitura dos cadernos durou três dias. Tempo que foi passado a transitar algumas vezes por dia entre a secretária e o antigo sofá forrado de couro escuro em capitonê, que ficava do lado de lá do meu gabinete. No fim de tudo, pousei o último dos cadernos e servi um Bourbon retirado de um lote enviado por um cliente há não muito tempo atrás. Enquanto me aproximava da janela, olhei para o relógio e vi que eram três da tarde de sexta-feira. Lá fora, a cidade borbulhava com a sua correria habitual e ali permaneci durante algum tempo, encostado à janela, tendo por companhia aquelas dezenas de histórias que me deixavam inquieto. Histórias que ao pairar na sala faziam-me sentir como uma criança a querer recolher de novo as borboletas que por momentos havia deixado escapar para a liberdade ilusória de um espaço fechado. Apesar de aquele gabinete ter-se tornado no meu casulo, naquele momento estava certo de que não pertencia àquele lugar.

O meu escritório fica no oitavo andar do Palácio Barolo, um dos edifícios mais altos de Buenos Aires, que fica na Avenida de Mayo. Fora ali que havia passado os últimos dias, lendo avidamente os muitos parágrafos escritos por mim mesmo, há tantos anos atrás. Pelo menos, os anos suficientes para que em quase todas as páginas acabasse por tropeçar em mais um detalhe esquecido, que funcionava como uma pedra no caminho que tinha de ser contornada, porque me levavam pensar se de facto tinha mesmo sido eu a viver aquilo. Penso até que, não fosse a minha caligrafia fatigada de quem escreve à velocidade do pensamento, ainda estaria a duvidar de que tudo aquilo fosse meu.

Os pensamentos serpenteavam descontrolados entre memórias dispersas, e nem o Bourbon que tinha na mão me tirava o assombro de ter encarado o meu passado como nunca o tinha visto antes. O exercício de me afastar e de ver tudo detalhadamente e num curto espaço de tempo, lançou uma nova luz sobre tudo, incluindo os espaços naturalmente silenciados por uma memória tendenciosa.

Dizem que os andares deste edifício representam os níveis descritos na Divina Comédia, de Dante. Assim sendo faz todo o sentido que esteja sentado bem no meio, naquele que será um dos andares do Purgatório. Lembro-me que um dia destes, enquanto por aqui deambulava pensativo, notei numa das abóbadas que marca a extremidade de um dos corredores do edifício. Nela, encontra-se gravado: nocet empta dolore voluptas, que significa prejudicial é o prazer comprado ao preço da dor. Mas tantos anos passados, já não me custaria nada escrever-lhe. Seria aliás um gosto reencontrar-me, ainda que apenas por escrito, com a única pessoa capaz de compreender tudo o que naquele dia eu estava a reviver. O que seria feito dela? Como estaria? A minha curiosidade por saber da Inês juntava-se à necessidade súbita que eu ali sentia, de contar a história toda. A história daquilo que, no fim de contas, realmente importou.

segunda-feira, 18 de junho de 2012

milagres

"o mais engraçado de tudo é que, mesmo aqueles que não acreditam em milagres, desejam que eles aconteçam"

quinta-feira, 24 de maio de 2012

flashback

“Espanta-me ter sobrevivido à vida que levei. Espanto-me sobretudo porque sempre procurei encontrar o aborrecimento naquilo que mais me consumia."

quinta-feira, 12 de abril de 2012

grandes viagens

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Foi uma altura em que conheci muitas mulheres e talvez tenha sido o início de um longo processo para ficar a percebê-las. Um processo que não tenho ainda a certeza de que tenha terminado. Mas de facto, com o tempo, fui-me apercebendo como são muito mais complexas, intensas e premeditadas do que aparentam, e certamente muitíssimo mais interessantes do que nós homens. Todas têm qualquer coisa de intrigante, qualquer coisa por descobrir que faz com que cada uma seja especial: uma curva, um sorriso ou um segredo.
Claro que tive as minhas paixões. Fui muito feliz em Buenos Aires. Mas não é menos verdade que com as mulheres que tive me aconteceu de tudo, incluindo o que nunca deveria ter acontecido. Cometeram-se erros, partiram-se corações, pessoas foram deixadas para trás. O tio Vasco é que tinha razão quando dizia que as mulheres ensinam-nos a perceber o valor do silêncio. 
Todas as mulheres da minha vida ensinaram-me mais qualquer coisa sobre mim. Foi graças a elas que eu me descobri verdadeiramente, que me conheci como sou. Acho até que foram elas que fizeram de mim um homem. Deixei de me explicar e de me queixar. Aprendi a não repetir os mesmos erros, a não me deixar manipular pela culpa e a não permitir que eu me atravessasse no meu próprio caminho. Mas sobretudo o que as mulheres me ensinaram foi a ouvi-las e a perceber o seu papel de silenciosas guardiãs do espaço à sua volta, por si ou por interposta pessoa. As mulheres são muito mais fortes do que nós. A maior parte tem uma enorme sensibilidade e vêm quase sempre equipadas com a coragem necessária para a acompanhar.
Mas impressiona-me pensar que ao contrário do que todos dizem, muito pouca gente gostou verdadeiramente de alguém, durante toda a sua vida. Podem dizer que sim, mas isso é porque todos se consideram a patética personagem principal do seu pequeno romance particular. E apesar de eu ter tido mulheres que gostaram de mim pelo que realmente sou, a verdade é que acabei sempre por deixá-las ir, sem nenhum motivo aparente. 
Bem lá no fundo sempre soube que, desde que te conheci, nunca mais tive aquela realização interior do dia seguinte, que nos faz querer transportar todas as manhãs para o resto das nossas vidas. Nunca mais senti esta vontade de estacionar todo o afeto contido numa vida passada, presente e futura dentro do pequeno espaço de um abraço bem fechado pela manhã. E mesmo apesar das relações que durante estes anos ainda cheguei a ter, na manhã, na semana ou no mês seguinte acabava sempre por ser assaltado por aquela sensação difícil de conviver, de que afinal, não estava assim tão disponível quanto gostaria estar.
Mas quando passamos pelas mesmas coisas vezes e vezes sem conta, com o tempo, tudo começa a fazer sentido. De facto, foram grandes viagens as que fiz com todas as mulheres que tive. Mas com nenhuma delas fui tão longe, como aquela que fiz até agora, contigo no meu coração.
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