A
leitura dos cadernos durou três dias. Tempo que foi passado a transitar algumas
vezes por dia entre a secretária e o antigo sofá forrado de couro escuro em
capitonê, que ficava do lado de lá do meu gabinete. No fim de tudo, pousei o
último dos cadernos e servi um Bourbon retirado de um lote enviado por um
cliente há não muito tempo atrás. Enquanto me aproximava da janela, olhei para
o relógio e vi que eram três da tarde de sexta-feira. Lá fora, a cidade
borbulhava com a sua correria habitual e ali permaneci durante algum tempo, encostado
à janela, tendo por companhia aquelas dezenas de histórias que me deixavam
inquieto. Histórias que ao pairar na sala faziam-me sentir como uma criança a querer
recolher de novo as borboletas que por momentos havia deixado escapar para a
liberdade ilusória de um espaço fechado. Apesar de aquele gabinete ter-se tornado
no meu casulo, naquele momento estava certo de que não pertencia àquele lugar.
O meu
escritório fica no oitavo andar do Palácio Barolo, um dos edifícios mais altos de Buenos Aires, que fica na Avenida de
Mayo. Fora ali que havia passado os últimos
dias, lendo avidamente os muitos parágrafos escritos por mim mesmo, há tantos
anos atrás. Pelo menos, os anos suficientes para que em quase todas as páginas acabasse
por tropeçar em mais um detalhe esquecido, que funcionava como uma pedra no
caminho que tinha de ser contornada, porque me levavam pensar se de facto tinha
mesmo sido eu a viver aquilo. Penso até que, não fosse a minha caligrafia fatigada
de quem escreve à velocidade do pensamento, ainda estaria a duvidar de que tudo
aquilo fosse meu.
Os pensamentos serpenteavam
descontrolados entre memórias dispersas, e nem o Bourbon que tinha na mão me
tirava o assombro de ter encarado o meu passado como nunca o tinha visto antes.
O exercício de me afastar e de ver tudo detalhadamente e num curto espaço de
tempo, lançou uma nova luz sobre tudo, incluindo os espaços naturalmente silenciados
por uma memória tendenciosa.
Dizem que os andares deste
edifício representam os níveis descritos na Divina Comédia, de Dante. Assim
sendo faz todo o sentido que esteja sentado bem no meio, naquele que será um
dos andares do Purgatório. Lembro-me que um dia destes, enquanto por aqui deambulava
pensativo, notei numa das abóbadas que marca a extremidade de um dos corredores do
edifício. Nela, encontra-se gravado: nocet empta dolore voluptas, que
significa prejudicial é o prazer
comprado ao preço da dor. Mas tantos anos passados, já não me custaria nada
escrever-lhe. Seria aliás um gosto reencontrar-me, ainda que apenas por
escrito, com a única pessoa capaz de compreender tudo o que naquele dia eu estava
a reviver. O que seria feito dela? Como estaria? A minha curiosidade por saber
da Inês juntava-se à necessidade súbita que eu ali sentia, de contar a história
toda. A história daquilo que, no fim de contas, realmente importou.
olá, boa noite josé,
ResponderEliminarmoro no brasil e visitei o hotel. estou querendo muito ter as traduções das frases em português, você sabe onde conseguir?
se souber como me ajudar, favor responder para o email bruna_uemg@yahoo.com.br, pois é o que vejo.
obrigada, abraços.