aqueles pequenos gestos
(...)
O meu escritório fica no
oitavo andar do Palácio
Barolo, um dos prédios mais altos de Buenos Aires.
Aqui, cada coluna, arcada ou capitel está decorada com inscrições, gárgulas e
símbolos da Divina Comédia, de Dante. Neste arranha-céus gótico, até os
diferentes andares representam os níveis da vida depois da morte, descritos nos
cantos daquela obra. Os andares de baixo representam o inferno, os do meio, o
purgatório e os de cima, o céu. Tudo coroado por um farol cuja luz se vê do
Uruguai. Faz assim todo o sentido que eu tenha passado estes últimos dias aqui
num dos andares do Purgatório, transitando entre a
secretária e o antigo sofá forrado a couro escuro em capitonê, que fica mesmo
ao fundo do meu gabinete. Lendo avidamente nos meus cadernos, os muitos parágrafos escritos por mim mesmo, há tantos anos
atrás. Pelo menos há anos suficientes para que, em quase todas as páginas fosse
tropeçar em mais um detalhe esquecido, que tinha de ser cuidadosamente contornado
por me levar a pensar se de facto tinha mesmo sido eu a viver aquilo tudo.
Penso até que, não fosse a minha caligrafia fatigada, característica de quem
escreve à velocidade do pensamento, e ainda estaria a duvidar se tudo o que ali
via escrito era meu.
Servi mais um Bourbon
duplo, retirado de um lote que me tinha sido oferecido por um cliente, há não
muito tempo atrás. Os
pensamentos serpenteavam descontrolados entre reflexões e memórias dispersas, e
nem o copo que seguro chega para me tirar o assombro de ter encarado a
minha história como nunca a tinha visto antes. O exercício de me afastar por um
momento e de ver tudo que se passou detalhadamente e num curto espaço de tempo,
lançou uma nova luz sobre o meu passado, incluindo sobre os espaços naturalmente
silenciados pelos caprichos de uma memória tendenciosa. Fez-me voltar aos
tempos passados com a Inês e pensar nas muitas vezes em que ao longo dos
últimos anos me senti como um veterano de guerra, com
um daqueles casos de stress pós-traumático, carregando nos ombros o peso de
todos aqueles momentos geniais que juntos vivemos. Como aquele último dia do
piquenique na praia. Em que fitei longamente todo aquele aparato, ela e o
horizonte. Estava de óculos escuros para que ninguém me visse a chorar. E para
não confrontar ninguém, incluindo eu, com todas aquelas emoções. Fá-lo-ia mais
tarde. Foi um de vários dias cheios de acontecimentos que me encheram de
sentido e de sinais que me fizeram ver além das coisas apenas visíveis. Como os
seus cuidados, o seu cabelo desgrenhado, todo aquele cenário e as suas mãos
generosas desenhando todos aqueles pequenos gestos que na altura me
pareceram perfeitamente capazes de salvar o mundo.
(...)
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